São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Os organismos multilaterais e o Brasil

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARESESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil e a América Latina em geral nunca tiveram qualquer peso nos organismos multilaterais fundados sob a égide da conferência de Bretton Woods: FMI, Banco Mundial e Gatt. Na verdade, eles não foram criados tendo em vista a periferia do mundo capitalista, mas sim para tentar regular as relações entre os países derrotados e vencedores da 2ª Guerra Mundial.
Ao superar-se rapidamente os problemas de estabilização e reconstrução européia e japonesa pela via das relações bilaterais e geopolíticas, fora da alçada dos organismos multilaterais, o FMI e o Banco Mundial passaram a dirigir suas atenções aos programas de estabilização e desenvolvimento dos países subdesenvolvidos.
A América Latina passou a receber uma atenção preferencial e as missões de estabilização de meados da década de 50 ficaram famosas pelos impactos no Chile, Argentina (pós-peronista) e México e, por um brevíssimo período, no Brasil, na gestão Gudin de 55.
Daí em diante, com a mesma doutrina básica, o FMI continuou a tentar enquadrar países latino-americanos tão dessemelhantes quanto as pequenas repúblicas centro-americanas e os países maiores da América Hispânica.
O Brasil nunca conseguiu adaptar-se às condições impostas pelo FMI por muito tempo, dada sua opção sistemática pelo desenvolvimento e as possibilidades que lhe davam a sua condição de economia continental com pequeno grau de abertura ao comércio exterior. Isto valeu para a ruptura frontal do período JK com o FMI e para o período do regime militar até a crise da dívida externa.
A partir dos sucessivos fracassos de estabilização da primeira metade da década de 80, a doutrina dos organismos multilaterais aumentou a sofisticação, propondo condicionalidades cruzadas entre o FMI e o Banco Mundial, para obter o seu apoio financeiro.
Os resultados desta segunda onda de políticas de ajustes global foram uma desintegração subordinada de nossas economias e Estados nacionais que mergulharam o futuro da maioria dos países da América Latina numa incógnita.
Os mais famosos ajustes recentes, da Argentina e do México, supostamente bem sucedidos, são hoje postos em dúvida por alguns analistas do Banco Mundial. No caso mexicano, os terríveis efeitos políticos e sociais têm sido o preço pago pela sua população em troca da adesão incondicional do governo do México ao governo norte-americano desde 1988.
O Brasil atravessou a última década aos solavancos, cedendo e recuando parcialmente às pressões, sem ter condições objetivas de "ajustar-se" ao modelo das instituições multilaterais, incompatível com sua estrutura econômica.
Como não tem podido avançar numa direção própria, é considerado um caso patológico e rebelde ao Consenso de Washington. Esta semana fomos mais uma vez penalizados pelo governo norte-americano, em nossa única posição com algum peso em Washington, a secretaria de operações do BID, que será retirada do Brasil.
O BID é uma instituição que foi fundada por iniciativa de alguns países latino-americanos, liderados pelo Brasil nos tempos do saudoso JK. Insatisfeito com o montante de financiamento público disponível para projetos de desenvolvimento e querendo escapar da tenaz das condicionalidades do FMI e do Banco Mundial, que enquadravam muito e emprestavam pouco, Juscelino liderou a operação panamericana no bojo da qual foi fundado o BID.
Apesar de que os países latino-americanos detinham e detêm a maioria do capital e os EUA aportam pouco mais de um terço, em 1988, por ocasião da sétima reposição de capital do banco, ficou consagrado um quase direito de veto do governo norte-americano nas decisões da diretoria do BID.
Isso se deveu à fragilidade da posição mexicana, que perdeu nesse ano a presidência do banco e pleiteou com muitas concessões o seu Plano Brady e também à delibidade do Brasil, depois do fracasso do Cruzado e da primeira moratória da dívida externa.
Às concessões que o ex-presidente Sarney foi obrigado a fazer na negociação da dívida externa, pagando mais de US$ 20 bilhões sem qualquer contrapartida de aporte líquido dos organismos multilaterais, seguiu-se uma nova moratória e novas concessões no governo Collor.
As dificuldades do Brasil no plano das relações financeiras e comerciais com os EUA são permanentes desde 1988, independentemente das concessões sucessivas que os governos brasileiros foram fazendo. Apesar de termos deslocado para Washington negociadores realistas e pragmáticos, ou mesmo favoráveis ideologicamente ao Consenso de Washington, isso não tem ajudado.
Assim, não há como explicar a posição de subserviência das elites de poder em nosso país, que as leva, mais uma vez, a falsas racionalizações, face às derrotas recentes que fomos obrigados a engolir, no BID, no Gatt e, finalmente, na negociação da dívida externa.
Por que não podemos, ao menos, aceitar as derrotas com dignidade e manifestar a nossa indignação, ainda que em termos diplomáticos, ante as declarações recentes do secretário do Tesouro norte-americano, Lloyd Bentsen, ao Congresso americano, ou do sub-secretário, Larry Summers, na assembléia de Guadalajara que nos cassou o posto do BID?
Por que insistimos em proclamar que as negociações do Gatt e da dívida externa nos são favoráveis no futuro e não calculamos as perdas que elas nos provocam no presente, como acaba de fazer o próprio Congresso norte-americano em relação à queda de suas tarifas? Não haverá futuro se não reagirmos com dignidade e veracidade no presente.
Ouçamos as declarações do secretário do Tesouro, Bentsen, em depoimento na Câmara dos Deputados em março deste ano, publicadas pela "Gazeta Mercantil" em 11/04/94: "Deixem-me falar sobre três dos nossos mais importantes objetivos nos bancos multilaterais de desenvolvimento em 94: aumento das exportações, redução dos custos orçamentários dos Estados Unidos e reforço dos interesses dos EUA em áreas estratégicas"... "Como o presidente Clinton tem dito, os Estados Unidos precisam estar engajados no exterior se quisermos estar bem em casa. Por isso, o Nafta e o Gatt são tão importantes"... "E é aí também que entram os bancos multilaterais de desenvolvimento"... "As políticas econômicas que eles promovem aumentam o crescimento e protegem os interesses dos Estados Unidos em muitas nações ao redor do mundo"... "o aumento de exportações americanas induzido por estes bancos é estimado em mais de US$ 7 bilhões por ano e vem de mãos dadas com os empréstimos concedidos".
Os países que recebem estes recursos são os responsáveis pelo recente sucesso das exportações americanas. Estes sucessos são, pela ordem: México, Venezuela, Brasil, Argélia, Turquia, Indonésia, Argentina, Filipinas e outros países da Ásia.
Naturalmente, as "condicionalidades" não se aplicam ao Japão e aos Tigres Asiáticos, com quem a "guerra comercial" vai de vento em popa e continuam reagindo ferozmente ao neoliberalismo do Consenso de Washington.
Para quem não sabe, ou não quer lembrar, o atual candidato FHC é membro ilustre da comissão de relações exteriores do Senado há muitos anos e foi ministro das Relações Exteriores e ministro da Fazenda do atual governo. Fernando Henrique é hoje um dos maiores "racionalizadores" e propagandistas das nossas "excelentes relações com Washington".
Isto não é de estranhar para quem declarou, não faz muito tempo, que deveríamos esquecer o que ele escreveu sobre "Teoria da Dependência" e propôs o arco de alianças que, segundo ele e alguns de seus "cardeais", o levará à Presidência da República.
Não precisa ser "intelectual crítico" para entender o que está acontecendo. Já os mal chamados "intelectuais progressistas" têm menos desculpas do que o seu patrono, uma vez que, supostamente, não querem o poder e deveriam estar empenhados em defender a transparência nas negociações internas e externas e os interesses permanentes da nação brasileira.
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES, 63, é economista, professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp).

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