São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O gesto poético de um artesão

RÉGIS BONVICINO

Durante o último verão, um poeta, que reúne em si também a condição de artesão gráfico, resolve imprimir, valendo-se de tipos manuais, em sua oficina, na cidade de Ouro Preto, dez poemas de dez diferentes poetas contemporâneos vivos, em pequenas tiras amarelas. O papel usado é o papel de seda. O conjunto é intitulado "Sol" e oferecido ao público sob o chancela das "Edições Verão".
Os volantes com os poemas são distribuídos ao longo dos quatro dias de carnaval à população local e aos turistas.
Esta foi a maneira encontrada por Guilherme Mansur –responsável já por outras primorosas edições– de chamar atenção para a questão do deslocamento em que vive a poesia nas sociedades industriais e pós-industriais.
A pequena coletânea, intitulada irônica e paradoxalmente de "Sol", coloca lado a lado poetas de distintas vertentes e gerações: Augusto de Campos e Manoel de Barros; o neoconcreto Reynaldo Jardim e Haroldo de Campos; Paulo Leminski –este ano já se vai para o quinto aniversário de sua morte– e Josely Vianna Baptista; Chacal –um tanto desaparecido– convive com Carlos Ávila.
O gesto de Guilherme Mansur retoma imediatamente questões e propostas das vanguardas dos anos 50 e 60. Porém, não é só isto que dá consistência ao seu trabalho de recortar poemas sob o signo do sol. A coletânea de volantes impressiona pela qualidade gráfica, no caso tipográfica –criticamente "saudosa" de um tempo em que a arte e a poesia forneciam modos exemplares de produção para a sociedade.
Cabe aqui a observação de Giulio Carlo Argan: "Na nova configuração da sociedade e na cidade que a reflete a arte já não tem uma posição nem uma função social: a sua tradição esgota-se e detém-se."
À gratuidade da poesia –historicamente uma arte fora do mercado, pelo menos no Brasil– soma-se o gesto "gratuito" de distribuir volantes com poemas sobre o sol, durante o carnaval, para leitores certamente refratários.
Trata-se então de um protesto silencioso, como se o sol fosse a poesia em si, por exemplo, no volante que estampa o exaltado e lírico texto de Leminski: "Eu vi o sol quadrado/ o sol de olho saltado/ multiplicado pelo sol." Aqui, e neste contexto, a esvaziada palavra "metalinguagem" funciona. O sol ao quadrado, multiplicado pelo sol, que (quase) nada ilumina, substituindo hiperbolicamente a própria poesia.
A poesia esgotada, detida, pela ausência de público, multiplicando-se, cega talvez, a si mesma. No jogo de sombra e luz do conjunto de volantes aparece um verso que, por sua força além do próprio poema, pode explicar o conjunto: "Estar sol: o que a invenção de um verso contém" (Manuel de Barros).
Pequenos gestos dialéticos, como este de Guilherme Mansur, podem estimular uma poesia outonal, perdida entre o passado e o "marketing", como a brasileira.

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