São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Leia trecho de romance inédito de Osman Lins

OSMAN LINS

(...) Soldados marcham decididos no rumo da estação carregando acima dos bonés, em meio ao espinhal de canos com as bocas voltadas para o sol, uma barrica de bacalhau, escura e suja –de barro, de sangue seco, de gosma–, folhas de mato saindo por uma racha, o paletó de riscado em cima da barrica, as duas mangas, rotas nos cotovelos, penduradas (onde os braços e onde as mãos?), um pedaço de fumo de rolo no bolso inferior e coroando tudo o imenso chapéu cor de café, largo como a boca da barrica, três diferentes ligas de mulher passadas à maneira de fita na copa dura de sangue e, entre os buracos de balas, um broche ordinário, arrancado ao vestido de alguma dona –ou talvez dado– e uma estrela de prata, de seis pontas, símbolo disparatado do conhecimento impossível, da realização, nos animais terrestres, do que vêem e sonham os pássaros de vôo alto.
Os que aguardavam uma carroça de mortos tiveram a notícia de que chegava uma barrica coberta (ali: contido, escondido, encerrado ninguém disse ainda o quê) correm de todos os pontos de Palmares, sabem como eu sei, a força e a importância do oculto, a carga abrigada no escuro e conduzida em triunfo (ou conduzida em cólera? em vingança?) significa mais que qualquer outra amontoada em dez carretas e transportada às claras sobre rodas. Afluem, entre afoitos e indecisos, à estação, e formam em torno dos soldados um cerco. Lá vem eles e lá vou eu.
Por sobre o murmúrio do largo, um dobre de sinos. Alguém diz que o trem para o sul já passou, agora só amanhã podem levar a cabeça para ser exposta e enterrada em Alagoas.
Abaixo das sobrancelhas pretas, muito grossas, de Manuel Izidoro, os olhos fundos estão fechados, o esquerdo um pouco mais que o outro, como se ele tentasse ainda um tiro, o último.
O sargento 16 tira o sabre, aproxima-se, parecendo atiçar fogo de lenha, mexa na cabeça de Manuel Izidoro, rindo, para se ver melhor a cara do bandido. A cara se alça cheia de mando, como se nos cortasse o olhar severo. De repente, já embriagado por essa espécie de exalação que a entrada da tropa espalha na cidade, vejo como se algum louco me entregasse –numa língua nova, informe, por ele imaginada, que nem o inventor alcançasse –um decreto ligado ao meu destino e que tanto pode ser minha sentença de morte como o início de fantástica arrancada, vejo que a cabeça na barrica, descontada a diferença de idade e o lábio leporino de Manuel Izidoro, que não tenho, é a minha própria cabeça e que Manuel Izidoro, degolado, ... osso jogado no lixo, brada uma ordem, não sei qual, mas que é preciso cumprir –e também não sei a quem, talvez à cidade, talvez a mim.
Trechos do romance inédito

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