São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O 'tesão de boate' na rota da boemia

SÉRGIO AUGUSTO

O 'tesão de boate'na rota da boemia
Conheça o roteiro de Dorival Caymmi em sua passagem pelo Rio de Janeiro

Há coisa de quatro meses encontraram no espólio de Paulo Tapajós quatro músicas inéditas de Dorival Caymmi. Seu filho Danilo, a princípio, duvidou: "Não é possível. Isto não existe!"
Depois, aceitou as evidências de que seu pai era de fato o autor de "Garota Bonita", "Um Beijo na Sombra", "O Lencinho" e "O Cantor da Lua", composições pré-históricas, arroubos adolescentes, há décadas guardadas num dos relicários mais ricos da música popular brasileira. Tão antigas eram que o próprio autor só conseguiu se lembrar das duas primeiras.
"Garota Bonita", fox-canção do começo dos anos 30, com referências aos galãs Ramon Novarro e John Gilbert, estampa em todas as estrofes a influência de Lamartine Babo: "Garota bonita/ da cor de Iracema/ que vai ao cinema/ às duas da tarde/ que fala em Ramon/ que fala em John/ mas que não fala em mim.../ Garota morena/ quisera ser fita/ famosa, bonita/ falada em inglês/ para olhares só pra mim.../ É sempre assim/ zombas de mim/ saltas de amor em amor/ qual borboleta/ de cor violeta/ saltas de flor em flor".
Naquela época, já sonhando com o Rio, Caymmi ainda não era o compositor único, singularíssimo, por cuja travessa bonomia os cariocas se encantariam a partir de 1938, quando ele aqui chegou em plena quaresma de um carnaval inesquecível e com o Estado Novo a todo vapor.
Seu primeiro pouso foi, como era costume entre os que vinham de fora e tinham o dinheiro contado, uma pensão. Não no Catete, como outros forasteiros (Rubem Braga, Graciliano Ramos etc) preferiam, mas no centro da cidade. Naquele tempo, o melhor do Rio não estava na zona sul.
Trabalhar, morar e farrear eram verbos conjugados na zona central. Era ali, com a Lapa de epicentro, que ficavam as redações dos jornais, as emissoras de rádio, as gravadoras, as pensões, os apartamentos acessíveis, os bares, os cabarés e os puteiros.
Caymmi reinou em todos esses nichos. Como nem as fronteiras de classe social impuseram limite à sua espantosa capacidade para fazer amigos e cativar pessoas, sua passagem pelo Rio emoldura uma das mais abrangentes memórias da cidade.
Através dela pode-se reconstituir boa parte da história não só da música popular, mas também do jornalismo, do rádio, do cinema, do teatro, das artes plásticas, da vida noturna e até mesmo do Partido Comunista, ao qual ele aderiu em 1940, por amizade a Jorge Amado.
Ficou íntimo, literalmente, de todo mundo. De emigrados nordestinos, como Antônio Maria, Augusto Rodrigues e Fernando Lobo, ilustres inquilinos do edifício Souza, na rua do Passeio, a poucos metros do cinema Palácio, em cima do qual havia uma sinuca frequentada por todos eles, mais, entre outros, Villa-Lobos e Guilherme Figueiredo. Pouco adiante ficava a Cinelândia, cercada de bares, onde os bambas do jornalismo e do show business se cruzavam e congraçavam.
Não espanta, pois, que um dia tenha composto uma valsa ("Beijos na Noite", jamais gravada) de parceria com Carlos Lacerda, trocado idéias pictóricas com Portinari e Pancetti, lido em primeira mão vários versos de Manuel Bandeira e ouvido confidências de Getulinho, filho de Getúlio Vargas, sem contar os inúmeros grã-finos que seu charme irresistível atraiu depois que a guerra na Europa acabou e a boemia noctívaga transferiu-se para a zona sul, seguindo a rota dos cassinos e da expansão imobiliária.
De uma hora para outra, Caymmi não foi mais visto no Amarelinho, nem na Taberna da Glória, mas no Alcazar, Bolero, Zepelin e Alpino, no lado mais chique da cidade, abafando no Golden Room do Copacabana Palace e já trocando o modesto bairro do Grajaú, na zona norte, pelo Leblon.
Ali, reencontrou-se com o mar e passou a bater o ponto no apartamento de Silvia e Leônidas Autuori, uma das mais animadas e versáteis colméias de artistas e intelectuais que o Rio já conheceu.
De uma hora para outra, também, os cassinos foram fechados, a situação apertou, Caymmi, já com três filhos para sustentar, se desesperou e pensou em voltar às origens. Numa tarde de 1947, no auge da penúria e do banzo, sentou numa mesa do bar Bibi e compôs "Saudades da Bahia". Socorrido pelos seus orixás, não precisou voltar. A sorte e o dinheiro acabaram aparecendo em sua vida na figura do ricaço Carlinhos Guinle.
Algumas línguas de trapo o criticaram por ter feito parceria com o jovem Guinle. "Caymmi entra com a música e o Carlinhos, com o uísque", zombavam. Segundo Caymmi, não foi bem assim.
De qualquer modo, na fase Guinle a carreira do baiano deu uma guinada e sua conta bancária passou a ter folga. Com um empréstimo do amigo, Caymmi comprou o seu primeiro apartamento, não por acaso no bairro que os dois haviam mitificado no samba-canção "Sábado em Copacabana".
Fita famosa, bonita e falada em inglês ele nunca fez. Filmou só em português, encarnando um tipo que suas canções tanto exaltaram: um pescador. Não da Bahia, mas de um vilarejo fluminense subitamente ameaçado por uma peste, afinal debelada por um médico adventício, que além de salvar vidas sabia conquistar as mulheres.
Nessa, o pescador dançou, perdendo a noiva (interpretada por Dulce Bressane, então casada com o pianista Benê Nunes) para o galante doutor, encarnado por Paulo Gracindo.
Em "Estrela da Manhã", dirigido por Jonald em 1950, Caymmi fazia o perdedor. Na vida real, ele quase sempre vencia. Garotas bonitas caíam a seus pés sem que ele precisasse soltar uma nota, musical ou monetária. A algumas delas –com nome (Dora, Doralice) ou sem nome– dedicou o que melhor sabe fazer. Stella, sua mulher há 54 anos, se mordia de ciúmes. Mas foi com indisfarçável orgulho que ela, na década de 50, cunhou para o marido o apelido de "tesão de boate".

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