São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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A terra da felicidade que os mapas ocultam

ANTÔNIO RISÉRIO

A terra da felicidadeque os mapas ocultam

Costumo dizer que, assim como o sanfoneiro Luiz Gonzaga é a encarnação da cultura sertaneja do Nordeste (a religiosidade áspera, o gado, o baião, a feira, o cangaço, etc), o poeta-músico Dorival Caymmi pode ser visto como a expressão estética concentrada da cultura litorânea de uma cidade tradicional, Salvador, principal agrupamento urbano do recôncavo agrário e mercantil da Bahia.
Mas é claro que apontar para o enraizamento sócio-ambiental não significa pretender encerrar esses artistas num horizonte "regionalista". Pelo contrário: a estetização da velha Bahia na obra de Caymmi não se prende ao meramente acidental. Caymmi é um emissor de mensagens nativas, sim. Mas tais mensagens possuem, tranqilamente, em valor universal.
Deixando de parte a faixa da produção caymmiana que diz respeito ao Rio de Janeiro, podemos dizer que o nosso poeta se planta num espaço pré-industrial. Recria esteticamente uma Cidade da Bahia tal como ele a conheceu entre as décadas de 20 e 40 do século que está findando. Cidade antiga, remansosa, culturalmente homogênea e voltada para si mesma.
Uma cidade que atravessara um longo período de isolamento, mais de cem anos de solidão, antes de ser arrastada pela expansão nordestina do capitalismo industrial brasileiro. É a Bahia anterior à Sudene, à BR-324, às atividades de prospecção e refino de petróleo, ao Centro Industrial de Aratu, ao pólo petroquímico, ao frenesi turístico e à onipresença televisual.
Como se não bastasse, além de estetizar uma cidade portuária ancorada ao largo do reformismo urbano brasileiro da época, Caymmi faz uma leitura seletiva do espaço citadino.
Inexistem, no seu mapa de Salvador, marcos urbanísticos pós-coloniais. A Salvador que se projeta de suas canções é a cidade dos antigos casarios, das velhas feiras, das igrejas centenárias.
Uma cidade povoada por uma gente "tradition-directed", com suas manifestações estético-culturais igualmente alheias ao processo modernizante que mobilizava as energias do Brasil meridional. Em poucas palavras, o que temos pela frente é um burgo colonial. Sítios históricos e figurações seculares.
Saindo de Salvador, Caymmi vai construir sua poesia praieira ainda num ambiente pré-industrial. Ingressamos aqui na "communitas" de Itapuã. Um arraial de pescadores, com a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia cercada de casebres de barro e palha, casas vegetais espalhadas entre as ondas azuis da orla e as dunas brancas de Abaité.
Emana dessa comunidade –com suas "ganhadeiras" e seus bailes pastoris, seus ternos e seus batuques– a marina caymmiana, feliz recriação artística, poético-musical, de uma vida comunitária praieira, sincrética (a mitologia da lagoa escura do Abaité resulta de elementos europeus, africanos e ameríndos) e tropical. E assim o nosso doce Dorival se firma como um grande lírico do mar.
Mas há um aspecto que deve ser realçado. Caymmi exclui programaticamente de sua poesia não somente as novidades urbanas, mas também a miséria e os conflitos sociais. Compõe, desse modo, uma versão idealizada da Bahia.
E é por esse caminho, produzindo cromos líricos isentos de ansiedade e de contradições, que constrói a sua "utopia de lugar", para usar o conceito do estudioso polonês Jerzy Szachi.
Na tipologia szachiana das criações utópicas, temos uma "utopia de lugar" quando a "terra da felicidade" não é encontrável em mapa algum ("true places never are", no dizer de Melville), ou quando topamos com reconstruções idealizadas de lugares realmente existentes. A Bahia caymmiana está, obviamente, no segundo caso.
Dito de outro modo, o universo lírico de Caymmi pôde ser investido de uma "função utópica" graças a seu forte contraste com as novas práticas sociais do Brasil meridional.
Quando nos metropolizamos, a preocupação em saber se "vale a pena viver na cidade" se explicita e se coletiviza, elevando-se à esfera da consciência social. Caymmi vai soar exatamente no espaço desse questionamento, com sua mensagem cálida e ecológica, sua paisagem de sobrados coloniais, jangadas, festas comunitárias e pescadores ensolarados.
Diversamente, Caymmi criou um espelho perfeito para o narcisismo baiano. Espelho que só vai se estilhaçar na década de 70, em conseqência de mudanças brutais na vida baiana. E aí se abrirá, entre sua obra e a realidade baiana, uma distância igualmente "utópica". Não por acaso, de resto, o velho Caymmi se converteu em referência do ecologismo na Bahia.
Finalizando, quero apenas dizer que é altíssimo o valor da recriação caymmiana de todo um modo de vida. Mário Faustino dizia que somente isso já seria suficiente para justificar a existência do poeta perante a sociedade. Sem falar, é claro, na "utilidade ontológica" do poema: "A simples beleza, a mera consciência da dignidade da espécie que um poema automaticamente comunica aos homens, seria suficiente para merecer-lhe as honras da humanidade". Nem é por outro motivo que, sempre que penso em Caymmi, me lembro de uma afirmação de Victor Hugo: à beleza basta ser bela para fazer bem.
ANTONIO RISÉRIO, 40, é poeta e antropólogo, autor de, entre outros "Caymmi: Uma Utopia de Lugar" (Perspectiva) e "Textos e Tribos" (Imago).

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