São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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Recado ao irmão caçula

JORGE AMADO

"Onde começas, onde termino?", escreve Jorge Amado em relato sobre sua amizade com Dorival Caymmi

Quem é que é esse moço de cabelos brancos que exibe tanta adolescência e picardia nesta festa de seus 80 anos? Eu vos direi que é o caçula de três irmãos. O mais velho atende por Carybé, mestre de muitas artes, nascido nas Sete Portas da Bahia, filho do Capeta. O do meio sou eu, o escriba que redige este recado para o caçula no dia da festa do seu aniversário. O nome dele é Dorival Caymmi: Doutor Honoris Causa da Universidade Federal, Obá de Xangô, cantor das graças da Bahia, o poeta maior, o músico principal.
Da melodia de "o mar quando quebra na praia", da cantiga dos pescadores: "o pescador quando sai, não sabe se volta, não sabe se fica, nas ondas do mar", nasceram João Gilberto, Caetano e Gil. É o pai de Nana, filha de sangue e canto dele e de Stella, duplamente herdeira: da voz do pai e da voz da mãe, voz celeste de Nana. Pai também, de magia e canto, de Bethânia e Gal, de Margareth e Daniela.
É meu irmão caçula, caçula e mabaça, meu irmãozinho Dorival, o noivo de Iemanjá, o amigo de Menininha, o igual de Camafeu de Oxóssi, o moço Dorival Caymmi.
São três doutores do povo da Bahia, são três obás de Xangô, no Opô Afonjá, sentados ao lado do trono de mãe Stella de Oxóssi, os três de cabelos brancos na sábia juventude dos 80 anos. O mais velho dos três, Carybé Obá Onasokun, o do meio, Jorge Obá Arolu, o caçula é Dorival Obá Oni Koyi. Carybé é o primogênito, artista da goiva e do pincel, das tintas e das cores; o do meio é romancista de putas e vagabundos, das roças de cacau e das ladeiras da Bahia, do Largo do Pelourinho e da Rampa do Mercado; o delfim é Dorival, a voz morna, cálida, envolvente, o murmúrio do mar, o violão, a melodia do vento nos coqueiros de Itapuã, o requebro do sedutor, a malemolência do sambista no passo do siri-boceta, o doce acalanto, canção de amor.
Três obás, mensageiros, arautos de Xangô, engravidaram do povo, receberam e pariram a Bahia na popa do saveiro, numa barraca de folhas rituais no Mercado, no peji de Yemanjá no Rio Vermelho. São o pai e a mãe da Bahia, são seus filhos bem-amados, os prediletos desta nação baiana que, como sabeis, é africana e índia, portuguesa e árabe, e judia safardi.
A peleja justa
São três doutores do povo da Bahia, três obás, sábios da sabedoria popular, três rapazes de 80 anos bem vividos. Foram bons de briga, campeões da justiça e da liberdade, combatentes nas fileiras dos pobres e dos desprotegidos, ergueram-se em fúria contra os preconceitos, contra todas as formas de racismo. Irmãos dos marginalizados, para eles pintaram óleos, desenharam, esculpiram, escreveram livros, compuseram e cantaram músicas, defenderam as boas causas, pelejaram a peleja justa, foram a face, a voz, o pranto e o riso do povo da Bahia.
Foram bons de briga e de namoro, pastorearam as moças, as solteiras, as casadas e as demais. Foram bons de beiço e bons de cama, competentes. Foram e ainda o são, não perderam a competência, que o digam em testemunho as três senhoras que os domaram: Dona Nancy, Dona Zélia, Dona Stella, três formosas gringas da Bahia.
Completas 80 anos, ninguém diria, não parece. Carybé, aos 83 completos, todas as manhãs cria beleza em seu atelier de Brotas: de seu pincel nasce a luz da Bahia, a aurora dos saveiros, as mulatas do afoxé, a roda dos santos no terreiro, a dança ritual dos orixás, as senhoras putas servindo doce de banana em rodinhas e licor das freiras, à freguesia, nos castelos, os portugas, os negros, os índios, a mulataria e a pesca do xaréu, a capoeira.
Durante a tarde e à noite Carybé só pensa naquilo, comadre Nancy já não aguenta, anda arriada dos quartos. Eu dei um nó nas tripas para afugentar a morte, vou maneirando o fatigado coração na fisioterapia, entre a cidade de Paris e o Rio Vermelho prossigo no ofício mal pago de contar histórias. E tu, nosso irmão caçula, chegas novinho à casa dos 80 e para te festejar nos reunimos, os três doutores, os três obás. Oitenta anos e estás cada vez mais moço, o moço Caymmi, cantor das graças da Bahia.
Meu irmão na esteira de palha do bori, meu parceiro na cantiga, tu na música, eu na letra. "É doce morrer no mar", o poema nas páginas de "Mar Morto"; "Vida de nego é difícil, é difícil como quê", o canto de trabalho inspirado nas em "Terras do Sem Fim"; "Gabriela, é, meus camaradas", na voz de Gal, "eu nasci assim, vou ser sempre assim... Gabriela"; "Bote açúcar na boca se quiser falar de mim", o rondó de "Tereza Batista Cansada de Guerra". Onde começas, onde termino? Juntos e fraternos prosseguimos vida afora, nos itinerários da aventura e da invenção.
Na esquina de Copacabana, na foto de Zélia, de mãos dadas, irmãos tão parecidos! Tão parecidos: se escrevesses escreverias meus romances, se eu compusesse comporia tuas modinhas, tão parecidos nos confundem. Na porta do terreiro do candomblé do Gantois os turistas de São Paulo me espiavam conversar com as ekedes e as iaôs. A madame de chapéu com flores não se conteve, pentrou sala a dentro, me perguntou:
– O senhor é Dorival Caymmi?
– Não, minha senhora, não sou Dorival mas sou irmão dele.
Vitoriosa ela voltou-se para o grupo:
– Vêem como eu tinha razão? Não é ele mas é o irmão dele.
Cama seresteira
Noivei Zélia no embalo de tua voz, em casa de Nonê de Andrade: "Acontece que eu sou baiano, acontece que ela não é". Somos baianos, nós, elas não: Stella Maris nasceu Adelaide, nas Minas Gerais. Samuel Wainer e eu a levamos ao juiz de paz e, após a cerimônia do casório a depositamos em tua cama seresteira, para que por fim pudesses colher a flor da laranjeira.
Samuel, experiente de todas as malandragens, duvidava que tivesses tido paciência de atravessar o tempo de namoro e de noivado sem colher o cabaço em flor da laranjeira. Ingênuo e confiante, garanti que Stella, donzela de Minas, não daria antes da assinatura do juiz. Mais de 50 anos são passados, ainda hoje resta a dúvida, de quem o acerto? Meu ou de Samuel (ai, que saudades, Samuca!)?
Zélia nasceu Gattai, na Itália da alameda Santos, ítalo-paulista, paulista de 400 anos. Na Bahia fez-se soteropolitana, reconheceu-se Zélia de Euá no jogo dos búzios do babalaô Nêzinho, mãe Senhora e mãe Menininha lhe deram posto e nome na casa de Oxum: Omin Tobi, Zélia Omin Tobi. De ti e de Stella nasceram Nana, a cantora incomparável, o maestro Dori, músico eminente, a composição e a flauta de Danilo. De mim e de Zélia nasceu o meu João Jorge, tranquilo e generoso coração (juntos, João e Danilo, nos tempos ginasianos, compuseram uma comédia musical no Colégio Andrews); e nasceu minha Paloma –tão eu!–, de quem afanaste o rádio russo que eu lhe trouxe de Moscou. Com descargas e fanhoso, ainda assim de boa serventia –jamais o devolveste. Nossas santas mulheres, nossos filhos, nossas famílias desabrochando em netos: Stellinha, tua biógrafa, força da natureza desatada em terremoto, Mariana fez santo no Gantois, iaô de Oxóssi, tu sabias?
No dia da festa de teus 80 anos, na porta da Casa de Xangô, Carybé te diz axé e eu peço tua benção e te abençôo, meu irmão. Abençôo o exemplo de tua vida, tua celebrada preguiça criadora, tua travessia, tua modinha, tua decência, tua estatura de baiano, o nosso amor fraterno, meu caçula.

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