São Paulo, domingo, 17 de abril de 1994
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O REI DA MPB

JOÃO MÁXIMO

Dorival Caymmi, que faz 80 anos no próximo dia 30, fala sobre o Brasil real e o que deixou de existir
Exercer acidadanianeste paísé viveruma anedota
ACM querser carregadopelo povo:coisa muitofora de moda

O Brasil em que Dorival Caymmi festeja seus 80 anos (oficialmente no próximo dia 30) é um Brasil real demais para um homem que nunca precisou dormir para sonhar. Como seu personagem, João Valentão, o compositor, poeta e pintor da Bahia e do país inteiro já teve seus momentos na vida.
Criou sua obra –canções e quadros– num país que apostava no futuro e inundava de esperança os corações de artistas como ele. Hoje, este Brasil já não existe. Mas não se pense que tal verdade é constatada em tom amargo.
Em seu apartamento de Copacabana, onde leva a mais pacata e rotineira das existências, Caymmi consegue manter a doçura mesmo num país de violência, corrupção e impunidade, a cuja cidadania confessa ter renunciado.
Em entrevista à Folha, é deste Brasil que ele fala. Sem saudosimo, lamenta ter ficado para trás um tempo em que valia a pena não só compor e pintar, mas também votar. Pensa tudo isso sem revolta. Ou, em sua própria palavras: "Naquela posição búdica de sentar, sorrir e deixar o mundo rolar".

Folha - Como é o Brasil em que Dorival Caymmi comemora seus 80 anos?
Caymmi - Pela primeira vez vou dizer uma coisa que nem à minha mulher eu disse: já desisti da luta para tornar-me um cidadão.
Até 1992, era uma luta que eu travava interiormente. Queria ser cidadão a todo custo. Mas descobri que a questão se dividia em duas: havia a cidadania Caymmi e uma outra cidadania, a de um país moralmente em declínio, no qual as pessoas perdem cada vez mais o direito de ser gente.
Naquele 1992, comecei a me interrogar: será que estou velho. Eu aqui (creio que como milhares de brasileiros) lutando quixotescamente pela cidadania e as coisas, lá fora, mudando.
Seriam mudanças inevitáveis, fruto do progresso? Talvez. Na dúvida, virei cidadão só por dentro, sem contagiar ninguém.
Folha - O que o fez mudar?
Caymmi - Foi ano ano do plebiscito. Lembra-se? Aquela palavra bonita, meio mágica, que está em todos os dicionários e em tudo que é papo furado.
Eu me encontrava em São Paulo, trabalhando, e deveria votar em trânsito. Aí foi aquela confusão. Olhei para baixo, da janela do Hilton, e só vi filas, filas e mais filas. E eu pensava comigo: para quê?
Havia para o povo escolher todo tipo de caminho, da política mais radical à monarquia. Achei graça. Amigos, como o João Ubaldo Ribeiro, me diziam que, em espírito, eu era meio monarquista, meio rei.
Foi quando descobri que aquilo tudo era uma grande piada. Nada ia mudar, como não mudou. Não votei. Decidi deixar de ser um lutador para me tornar apenas um cidadão pacato.
Folha - O que quer dizer com isso?
Caymmi - Quero dizer que não pretendo mais esmiuçar as coisas. Tenho sete netos e duas bisnetas. A maior parte de minha família é independente, já casou, o que me dá uma certa tranquilidade.
Numa palavra: concluí que exercer a cidadania neste país é viver uma anedota. É como jogar no bicho, sonhar com bobagens, querer ficar rico aos 80 anos.
Folha - Mas o que o depecionou tanto no Brasil?
Caymmi - Para explicar por que deixei de ser otimista, sem me tornar pessimista, tenho que rememorar o Brasil em que vivi.
Cheguei ao Rio em 1938. Eram os tempos do Estado Novo. As coisas eram difíceis, mas havia esperança. Troquei a Bahia por um Rio paradisíaco, hospitaleiro, bonito, sem pobreza nem violência. Podia-se sonhar naquele Brasil.
Eu mesmo fiz meus projetos de vida a partir da certeza de que, naquele país, podia-se apostar. Casei-me, tive filhos, achei que valia pena construir uma família aqui.
Mesmo na década seguinte, os anos 40 da guerra na Europa, o Brasil valia a pena. Tínhamos dificuldades, mas tínhamos futuro.
Folha - Quando acha que a situação começou a mudar?
Caymmi - No fim da década de 50, começo da de 60. A pobreza creceu muito no país naquela época. Houve também, a partir de 1964, um retrocesso político. Nossos quadros não se renovaram. A tal ponto que somos hoje um país sem heróis em sua história recente. Nem mesmo heróis de quadrinhos.
Lembro-me, aqui, de Carlos Lacerda. Fomos aliados e depois adversários políticos. Mas era um grande homem, um líder, um realizador. Já não existem políticos como Lacerda, Getúlio, Juscelino.
A propósito, mesmo como adversários, eu e Lacerda nos encontrávamos todo 30 de abril para tomarmos um chope juntos. Você sabia que nascemos rigorosamente no mesmo dia?
Folha - Quando se tornaram adversários? Na época em que você estava ligado ao PC?
Caymmi - Minha ligação com as esquerdas deveu-se mais aos amigos do que à crença política. Meus amigos eram Jorge Amado, Moacir Werneck Sodré, Samuel Wainer, Rubem Braga, os intelectuais de esquerda da época imediatamente após a guerra.
Folha - A última década tem sido marcada pela violência. Como você convive com a brutalidade nessa cidade que há mais de meio século adotou como sua?
Caymmi - Não há como fugir da violência. Crianças nas escolas são atingidas por balas perdidas. São fatos comuníssimos na vida da cidade. Já estamos aceitando isso como parte de nossa rotina.
Há uma palavra cômoda para explicarmos a violência: mudança. Os jovens já não pensam no futuro, a família mergulhou numa crise moral, os responsáveis pelo poder decaíram. Mudanças, dizem. São os novos tempos.
Folha - E as próximas eleições?
Caymmi - Não sei. Limito-me a declarar solenemente que não vou votar por absoluta descrença e falta de oportunidade de exercer a minha cidadania. Quer dizer, a cidadania tal qual eu a vejo. O que adianta botar um papel numa urna se os que recebem meu voto não me respeitam.
Folha - Refere-se à decadência da classe política, à corrupção, à impunidade ou ao quê?
Caymmi - A tudo isso ao mesmo tempo. Você me desculpe, mas não acredito no homem de hoje.
Folha - Como se sente com tantas homenagens?
Caymmi - Não são tantas quanto estão dizendo. Meus filhos é que estão cuidando disso. Mas, sinceramente, cada vez que um deles me vem dizer que esta ou aquela homenagem gorou, dou graças a Deus. Não estou preparado para essas emoções.
Além do mais, não gosto de muita badalação. Tenho fama de preguiçoso, mas essa fama eu deixei que crescesse para não ser muito assediado. Digamos que é um truque. Festas? Talvez um jantar em família, nada mais. É preciso não esquecer que este é um ano de eleições. Tudo que vai ser feito daqui para diante é pensando nas urnas. Caymmi não dá voto.
Folha - E a Bahia? Antônio Carlos Magalhães não vai preparar uma festa para você?
Caymmi - Tudo que o Antônio Carlos quer é ser carregado pelo povo. Coisa fora de moda, diga-se. Hoje em dia, nem mesmo jogador de futebol é carregado pela torcida.
Folha - No Brasil dos 80 anos vai tudo mal ou há algo que se salva? Por exemplo, a música. O que diz da chamada Axé Music e dos novos sons da Bahia?
Caymmi - Não posso falar do que desconheço. Muita gente tem me perguntado sobre esse tipo de música e a resposta é a mesma: não sei do que se trata.
Sou de um tempo em que o cancioneiro popular se apoiava em experiências vividas, na cultura e nos hábitos à volta dos compositores e dos poetas. Cantava-se o mar, o amor, um episódio do cotidiano, os personagens de nossa vida.
Começo a estranhar a Axé Music pelo nome. São duas palavras, uma de caráter sagrado do candomblé, que é assunto sério, e outra pedida emprestada ao inglês. Pelo que sei, temos uma palavra em português que quer dizer o mesmo. O que há é uma grande indústria por trás da música popular.
Folha - E como vive Dorival Caymmi aos 80?
Caymmi - Bem. Sou muito ligado à família, tenho uma vida metódica e tranquila. Refeições nas horas certas, dieta rigorosa, hora para receber as visitas, hora para ouvir música. Bem, meu mundo é este.

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