São Paulo, quarta-feira, 4 de maio de 1994
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Negra é a cor do nacionalismo brasileiro

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Erramos: 05/05/94

Diferentemente do que diz a legenda, a foto publicada registra o piloto Ayrton Senna em seu carro antes do treino de sábado (30/04), e não antes da corrida de domingo.
Negra é a cor do nacionalismo brasileiro
Não poderia ser diferente: a morte de Ayrton Senna suscitou comoção e incredulidade gerais.
Mas são reações até certo ponto contraditórias.
Comover-se com o fato é resignar-se a ele, deixar que o impacto da tragédia se impregne de afetividade, se dissolva aos poucos na lamentação e no luto.
A incredulidade –"não consigo acreditar no que aconteceu"– é uma reação mais intelectual do que emotiva: os hábitos, as certezas mentais adquiridas sofrem um choque, sentem o chão fugir sob os seus pés.
A incredulidade é uma forma de resistir à tragédia; a comoção, as lágrimas, uma forma de aceitá-la.
Vendo a notícia pela televisão, pudemos experimentar as duas reações ao mesmo tempo. De um lado, a cena brusca, rápida, do acidente, difícil de apreender em todos os seus detalhes. De outro, o uso da câmera lenta, as imagens congeladas de Senna no pódio, seus sucessos e sorrisos. De um lado, os fatos, incríveis como foram; do outro, emoções e memórias.
A TV cumpriu o duplo papel de relatar e comover, de ser instrumento de informação e de mobilização emocional. Foram tantas as imagens, notícias e comentários sobre a morte de Senna, que mesmo quem nunca ligou para a Fórmula 1 foi levado a envolver-se com o caso.
Até aí, tudo normal. Seria estranho se o acidente não adquirisse as dimensões emocionais que teve: gente chorando nas ruas, torcidas de times rivais unidas no estádio na homenagem ao herói, cidadãos atônitos e entristecidos.
Mas há outros fatores em jogo, se quisermos entender melhor as reações populares à morte de Senna.
É claro que o desaparecimento de qualquer ídolo, em qualquer país do mundo, suscita respostas parecidas: de Elvis Presley a River Phoenix, as pessoas choram e não acreditam.
A situação brasileira acrescenta, contudo, tonalidades particulares a esse quadro típico de consternação.
Em primeiro lugar, a morte de Senna ofereceu pretexto para a volúpia nacionalista, sempre reprimida entre os brasileiros. Nosso nacionalismo não tende a ser agressivo ou belicoso. Vive-se mais o nacionalismo das derrotas do que o nacionalismo das vitórias, o nacionalismo das tragédias mais do que o nacionalismo dos triunfos.
Torna-se comum associar o verde-amerelo com o negro do luto. A derrota das diretas– já e, em especial, a morte de Tancredo, cercaram de necrofilia o ufanismo patriótico. Antes, tivemos o fato fundador dessa morbidez nacionalista: o suicídio de Getúlio Vargas.
A morte verde-amarela manifestou-se nos comícios pró-impeachment, onde os manifestantes cobriam-se de preto. Tarjas negras foram usadas por emissoras de TV ao noticiar a morte de Senna.
Deveriam incorporar o negro às cores da bandeira nacional.
Nosso patriotismo tem, acredito, uma volúpia da derrota.
Era preciso que o sucesso internacional de Senna ganhasse a marca de nosso insucesso local. A identificação Senna-Brasil manifestou-se com mais clareza no acidente de Imola do que nas vitórias do piloto.
Fato curioso: Ayrton Senna sempre foi chamado simplesmente de Ayrton Senna. Desde que morreu, todos gostam de se referir a ele como "Ayrton Senna da Silva". Morto, ele é mais Silva, mais nosso.
Os êxitos do Brasil no futebol não valiam os êxitos de Senna e Fittipaldi no automobilismo. Pois futebol é esporte antigo, já identificado à brasilidade e, portanto, ao subdesenvolvimento. No mundo da Fórmula 1, os ingredientes de modernidade tecnológica, de competição individual, de sucesso recente dos pilotos brasileiros, conferem-nos maior motivo de orgulho internacional.
O destaque dos pilotos brasileiros na Fórmula 1 é um sintoma da modernização brasileira. Não é proeza de futebolistas pobres, instintivos. É coisa que vem de outra classe social. Pilotos brasileiros mostram o talento do branco urbano competitivo e fominha, não o talento generoso, capenga, negro ou mulato, dos futebolistas de subúrbio.
Ayrton Senna não era nenhum Garrincha. Depois de sua morte, foram esquecidas suas manifestações de antipatia e mesmo de arrogância. Uma emissora de rádio, neste domingo, inadvertidamente colocou no ar a narração de um vitória histórica sua, não sei se no momento da conquista de seu primeiro campeonato mundial. "Só falta a Senna", dizia o locutor emocionado, "ter mais comunicação com o povo que o admira tanto..."
Soou meio mal num dia de consternação e luto. Mas a gravação lembra quanto Senna (e Piquet) se indispunham com a imprensa e quanto o automobilismo é individualista e competitivo em comparação ao futebol.
Não sei se foi depois da briga com Ballestre, ou se foi por fruto da maturidade, que Senna se tornou um sujeito simpático. Vendo as entrevistas dele, reproduzidas domingo na TV, a gente se surpreende com a fragilidade visual, com o aspecto anti-heróico, antierótico, desse piloto que não parecia levar no rosto nenhum traço de determinação ou ímpeto.
Havia uma espécie de modéstia fisionômica em Ayrton Senna. Nada de maxilares aparentes, de nariz aquilino, de olhar fanático. Ele era todo fugidio, frágil, Mauricinho modesto, sem brilhantina.
Construiu-se assim uma identificação particular entre Ayrton Senna e o Brasil. Senna não tinha "brasilidade" como Garrincha ou Pelé. Mas também não era loiro de olhos azuis. Não era um estrangeiro, mas sim um exemplo do brasileiro que "pode se dar bem", desde que não fosse brasileiro demais.
O ideal de um brasileiro de sucesso internacional completou-se com a tragédia. Chorando por Ayrton Senna, as pessoas choram pelo Brasil. Não o Brasil de Pelé, de Dorival Caymmi, de Jorge Amado, mas um Brasil idealizado, competitivo, reconhecido no exterior não pelo exotismo, mas pela competência.
Mas, como no caso de Vargas, Tancredo, Ulysses, o luto cívico é de extremo nacionalismo. Celebra-se mais uma derrota brasileira. todos se unem na sensação de um Brasil trágico –coisa que, sabemos intimamente, o Brasil não é: vide carnavais e futebóis.
Pois há sede de tragédias no Brasil. De quando em quando, essa sede é aplacada, A morte de Ayrton Senna correspondeu a uma coisa nova: o mártir moderno, o mártir tecnológico, o mártir Fórmula 1. Não é mártir político, não o mártir Chico Mendes, não o mártir Antônio Conselheiro.
É como se um Collor inocente tivesse sido assassinado em Dallas. É como se o ideal de um Brasil moderno sucumbisse a 300 km/h. É como a morte de um astronauta. O país se sente moderno e morto, com Ayrton Senna.

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