São Paulo, terça-feira, 10 de maio de 1994
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Assembléia exclusiva ou golpe de Estado

ROBERTO ROMANO

Em boa hora a Folha iniciou a campanha pela assembléia revisora da Constituição federal, composta exclusivamente para este alvo. Em nossa terra, os cidadãos comuns são reduzidos ao silêncio. Mas neles reside a única força soberana e legitimadora. Acostumados aos oligarcas, os simples brasileiros supõem utópico o exercício das prerrogativas democráticas.
Num simpósio sobre "universidade e revisão constitucional", constatei certas causas para esta recusa das normas liberais. Naquele evento, um reitor disse com pleno dogmatismo: "A Constituição de 88 falou demasiado em direitos, pouco discorreu sobre os deveres dos cidadãos". Perplexo, ouvi as considerações dos outros locutores.
Todos, no debate, mostraram-se indignados com o reitor. Um jurista teve a paciência de explicar-lhe que o Estado brasileiro, no cotidiano, violenta os direitos e impõe obrigações ilegais. Pelo menos na Carta Magna, disse o didático jurista, deveria estar consignado que os cidadãos possuem direitos. O líder universitário permaneceu irredutível.
Enrubescido, voltei para a biblioteca e as salas de aula. Se os reitores, no Brasil, pensam desse modo, como pensarão os donos do poder? Esta mentalidade é o grande óbice para se confiar aos cidadãos comuns o direito máximo de prescrever todos os direitos e deveres nacionais.
O espanto com o autoritarismo do magnífico reitor levou-me a recordar as fontes de suas assertivas. O primeiro nome a ser lembrado é L. de Bonald. "O indivíduo", dizia o inimigo da Revolução Francesa, "só tem deveres e não direitos. Ele tem deveres para com a natureza humana, para com a sociedade e para com Deus. O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. O povo tem o direito de ser governado".
No Brasil, este ideário foi muito querido pelas ditaduras. Disse Getúlio Vargas: "O Estado não conhece direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos, têm deveres! Os direitos pertencem à coletividade" (Discurso em 1º de maio, 1938; citado por L. W. Viana). Os militares, com forte apoio jurídico civil, disseram: "A Revolução se (sic) legitima a si mesma" (Ato Institucional nº 1).
Por esses motivos, causa espanto advogar a idéia de simples cidadãos revendo a Carta Magna. Os homens de Estado, entre nós, julgam-se superiores. Como pôr nas mãos da patuléia os mistérios do poder? Casta auto-imposta ao país, traindo não raro os eleitores, os políticos que transformaram o Congresso em coisa sua não podem conviver com a possibilidade, para eles exótica, de os cidadãos legislarem.
Desde a época positivista a república foi impregnada pelas doutrinas que enxergam, nos cidadãos simples, menores que devem ser tutelados. Para eles, os deveres, não os direitos. Mas é prerrogativa sagrada de um povo soberano escrever a sua Constituição.
Nos Estados modernos, a tarefa faz-se através dos representantes, incluindo o referendo popular. Os deputados são eleitos para a legislatura ordinária ou só para situações excepcionais. Uma assembléia revisora exclusiva afirma-se como o exato oposto do "coup d'état". Para os defensores do golpe e da assembléia exclusiva, o status quo não é comum. Os dois estão certos neste item. Mas o golpe abole o vínculo entre poder e povo soberano.
A assembléia revisora exclusiva afirma a soberania popular, diminui ao máximo a distância entre povo e ato legislador. Ninguém pode olvidar este fato: a vida econômica, social, política, no Brasil, está numa situação plenamente desfavorável aos instrumentos habituais de ordenamento jurídico.
Se queremos eludir um golpe, torna-se preciso rever a Constituição através de pessoas sem compromissos com os atuais mandantes. Estes, na sua maioria, desconhecem os direitos e deveres do soberano, o povo brasileiro. O interesse da corporação política foi posto acima da salvação pública. Inapetentes para rever o texto básico do país, os representantes apegam-se aos cargos, calculando sua reeleição. Corporativistas impenitentes, eles absolvem seus pares em votações secretas, mostrando-se ilegítimos coordenadores dos negócios nacionais.
Sem revisão constitucional, nenhum poder será mantido após as eleições gerais no Brasil. Ou será preciso convocar uma assembléia revisora exclusiva, ou os governantes –de esquerda, centro, direita– ver-se-ão diante da gravíssima contingência de aplicar um golpe para obter alguma forma de governabilidade. Caso oposto, eles mesmos serão destituídos por outro golpe.
Dar ao país um documento democrático é "conditio sine qua non" para o exercício de qualquer poder legítimo. Uma assembléia revisora exclusiva restaura a verdade esquecida pelos legisladores e até pelos cidadãos: soberano é o povo. Instaurando-a, afastaremos os que se imaginam proprietários únicos da "res publica".

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