São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 1994
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Comédia que abriu Cannes chega ao Brasil

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Nos últimos filmes dos irmãos Ethan e Joel Coen, havia sempre um nome próprio no título (Arizona, Miller, Barton Fink), nenhum tão esquisito como o Hudsucker de "The Hudsucker Proxy", que ontem à noite abriu o Festival de Cannes e hoje estréia entre nós, traduzido para "Na Roda da Fortuna". Hudsucker é o sobrenome do mais alto executivo de um complexo industrial sediado em Nova York. "Proxy" quer dizer sucedâneo –no caso, um preposto chamado Norville Barnes (Tim Robbins), quase tão apalermado e manipulado por forças malévolas quanto o Jerry Lewis de "O Otário" (The Patsy).
Quando o filme começa, à meia-noite de 31 de dezembro de 1958, não é a Jerry Lewis que a comédia dos Coen nos remete, mas a uma fábula de Frank Capra. Ou melhor, duas. Como o Gary Cooper de "Adorável Vagabundo" e o James Stewart de "A Felicidade Não se Compra", Norville está à beira do suicídio, enquanto o resto da cidade, misto de Metrópolis com Gotham City, se entrega às últimas libações do ano. Ainda como nas duas fábulas de Capra, um flash-back interrompe a queda para o abismo para nos contar uma história ao longo da qual seus autores percorrem, homenageiam e parodiam várias décadas do cinema.
Certas situações, determinadas tomadas e alguns detalhes cênicos tiram o chapéu para o King Vidor de "A Turba", o Fritz Lang de "Metrópolis", o Orson Welles de "Cidadão Kane" e até para o modesto John Farrow de "O Relógio Verde". Quando um jornal levado pelo vento persegue o protagonista, até enroscar-se em suas pernas, no meio da rua, os cinéfilos de boa memória hão de se lembrar imediatamente das primeiras cenas de "O Delator".
American way of life
Mas é quase sempre sob o signo de Capra que "Na Roda da Fortuna" elabora a sua frenética sátira às tramóias do destino, à fugacidade do tempo, às velhacarias do "big business" e aos modismos da América. Aliás, a maneira mais eficaz de desmistificar o "american way of life" é arremedar e perverter o seu mais bem sucedido porta-voz cinematográfico. Joe Dante e Stephen Frears fizeram isto em, respectivamente, "Gremlins" e "Herói por Acidente".
Na cínica e impecável comédia de Frears, outra sombra pairava sobre os personagens –a de Preston Sturges, o sucedâneo sarcástico de Capra. Seu herói acidental era um "Ersatz" do falso fuzileiro encarnado por Eddie Bracken em "Herói de Mentira" (Hail the Conquering Hero), que Sturges escreveu e dirigiu meio século atrás. É a esta linhagem que o falso otário de "Na Roda da Fortuna" pertence.
Não bastasse, um anjo aparece de repente para salvar Norville de seu tresloucado gesto. Qualquer semelhança entre o "angelus ex-machina" interpretado por Charles Durning e o fantasma camarada que Henry Travers celebrizou em "A Felicidade Não se Compra" não é mera coincidência.
Fôlego curto
Estruturado em torno de formas arredondadas ou orbiculares (relógio, charuto, pires, bambolê, frisbee, auréola etc), "Na Roda da Fortuna" tem um começo de tirar o fôlego de qualquer espectador. Há muito o cinema não nos oferecia um prólogo tão vertiginosamente brilhante do ponto de vista visual e narrativo.
Num cenário "art déco" expressionista, anacronicamente concebido pela dupla Dennis Gassner-Michael McAlister e magicamente fotografado por Roger Deakins, os irmãos Coen recriam a comédia "noir" com elevadíssima dose de estilização. Pena que seu roteiro tenha fôlego curto e a suntuosidade das imagens não consiga compensar por muito tempo as suas notórias deficiências.
Ethan e Joel continuam nos devendo um grande filme do princípio ao fim.

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