São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 1994
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Pirotecnias para o caos

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Helicópteros em vôo rasante na praça dos Três Poderes. Milhares de homens em uniformes camuflados ocupam edifícios públicos em São Paulo e Brasília. O ministro da Justiça lê comunicado na televisão. Alguém está representando "Terra em Transe" para a novela das oito? Não. É o governo federal tentando debelar greves trabalhistas.
Formidável a longevidade da teoria conspiratória da articulação de greves. Os chefes de polícia antes da Revolução de 1930, os próprios revolucionários daquele tempo, os udenistas bradando contra os fantasmas da "república sindicalista", a revolução "comunista" nos anos 60, Sarney invadindo Volta Redonda com tropas.
Um adido militar norte-americano nos anos 1920 já registrava que as classes governantes brasileiras não conseguem lidar com greves: para elas, qualquer movimentozinho reivindicatório cheira a aterrorizante revolução.
A Polícia Federal no Brasil até o retorno à democracia em 1985 estava mais para guarda pretoriana da Presidência. Foi sempre fraca a noção de um Estado federal, garantia da ordem republicana, acima dos governos. A Polícia Federal, no passado, foi sempre instrumentalizada pelos caciques de plantão.
Durante os governos Getúlio Vargas, a PF era até uma boa sinecura para paus-mandados do arbítrio. O governo e o Estado descobriram na democracia que a PF tinha um papel diante das violações ao Estado de Direito toleradas gostosamente pelos governos estaduais.
A situação ficou mais clara quando a Constituição de 1988 consolidou a Justiça federal em todo o território nacional e ampliou a autonomia da Procuradoria Geral da República. A própria definição dos crimes federais foi alargada. Mas como impor o império da lei sem quadros e efetivos adequados da Polícia Federal?
Desde o retorno do governo democrático, com a reinserção do Brasil na legalidade internacional da proteção dos direitos humanos, o governo federal foi obrigado a assumir suas obrigações. E o Ministério da Justiça teve subitamente de descobrir que a proteção dos direitos estava dentro do seu mandato.
Mas não foi somente na promoção dos direitos civis que a Polícia Federal, às vezes a contragosto, redescobriu o seu papel. Que seria das investigações sobre a corrupção da clique Collor –PC Farias e suas ramificações com a máfia dos gatunos do Congresso Nacional se agentes e delegados da Polícia Federal não tivessem assumido com seriedade a investigação? O crime organizado internacional (em vez da subversão), a intensificação do narcotráfico e o contrabando internacional de armas aumentaram a relevância de uma Polícia Federal.
Nas inúmeras situações de crimes contra a liberdade de organização do trabalho, assassinatos e violência rural, muitas vezes com má vontade, passou a proteger aqueles que no passado reprimia.
A carência de recursos, no entanto, continua patente. Os efetivos que há dez anos atingiram 10 mil homens estão hoje reduzidos à ineficiência com 4.200 homens, reunindo agentes, delegados e escrivãos, peritos e até os malfadados censores federais. Em São Paulo há 1.000 funcionários e apenas 70 delegados. Há 4.300 depoimentos a serem tomados em 5.000 inquéritos parados. No total, 30 mil inquéritos em câmera lenta no Brasil.
Nas fronteiras, a situação é dramática. Dada a fraqueza da Polícia Federal, vai de vento em popa a estrutura montada pelos cartéis da cocaína. As instalações da Polícia Federal nos Estados são decadentes (em São Paulo, um pardieiro).
O que foi feito diante desse descalabro? Quase nada e ainda se permitiu deixar arrastar uma greve pela equiparação dos salários da PF com a Polícia Civil do Distrito Federal por 52 dias. Foi a inação que construiu a radicalização dos policiais grevistas.
Como acontece, desastres sempre são contagiantes: os grevistas federais erraram em não assegurar a metade dos serviços, como determina a Constituição (pouco importa se não há lei regulamentando). Ultrapassaram a fronteira da reivindicação justa para a provocação, fechando prédios, paralisando serviços. E comportando-se como alegres militantes soltando rojões e fazendo outras pirotecnias inúteis em plena sede do governo federal, sem qualquer sinal de consciência da gravidade de suas funções.
A decisão de convocar o Exército nacional para lidar com uma greve funcional é desastrada e equivocada. As fronteiras brasileiras estão totalmente desguarnecidas para a repressão ao tráfico de drogas e não se recorre ali à mesma energia militar que poderia ser justificada. O showzinho de soldados armados até os dentes nas ruas em Brasília e São Paulo foi grotesco, além de acintoso. A operação militar de "rotina" com helicópteros e deslocamento de forças aéreo-transportadas saltando na praça dos Três Poderes, escandalosa e ridícula.
Em vez de agravar o conflito, subir a tensão, melhor seria que as autoridades não entrassem nos delírios, tão surrados, de articulação sindical com fins eleitorais. Se alguns militantes sindicais acham que a mobilização de quarta-feira ajuda a algum candidato, devem estar tomados por compulsão suicida. Fariam melhor, como disse Luiz Inácio Lula da Silva, em Washington, em não criar pretextos que facilitem o recurso à força.
O governo federal deve, em vez de reprimir, dar condições à Polícia Federal para se ocupar do que está no seu mandato: a repressão ao crime organizado, o contrabando de armas, a violência rural, a impunidade das graves violações de direitos humanos, a imposição do império da lei. Greves trabalhistas devem ser cuidadas pelas partes, pelos tribunais, pela negociação parlamentar e da sociedade civil. Chamar o Exército é preparar o caos.

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