São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O "antropólogo espontâneo"

ALCIDA RITA RAMOS

Especial para a FolhaEnquanto os profissionais da antropologia passam por um longo aprendizado de mais de década de treinamento uiversitário e meses a fio em convivência direta durante pesquisas de campo com outras culturas antes de se abilitarem a dizer ou escrever qualquer coisa sobre elas, certas personagens afoitas assumem levianamente o papel de antropólogos espontâneos, pontificando sobre povos indígenas que muitas vezes nunca viram ao vivo.
Alguns exemplos: o empresário de garimpo José Altino Machado, o deputado Federal de Roraima Antonio Fagundes, e o "doutor em letras francesas" Janer Cristaldo (uma consulta aos bancos de dados da Universidade de Paris 3 - Sorbonne Nouvelle constatou a total ausência deste último nome no rol de seus doutores).
O resultado são declarações estapafúrdias sobre povos como os ianomâmi, que não têm condições de retrucar na mesma moeda. Tais análises improvisadas seriam cômicas se não fossem perigosas pelo seu teor racista.
Sem a menor cerimônia o senhor Cristaldo desfila a sua ignorância pelos textos do caderno Mais!, trazendo a baila alusões infelizes a "fornos modernos" que cremam gente a 1.360 graus e cometendo gafes embaraçosas, como afirmar que não é possível acender-se fogueiras "no solo úmido de uma floresta tropical" (se assim fosse, esse outro escândalo, o das queimadas da Amazônia, teria sido poupado ao Brasil).
Este doutor em letras francesas arroga-se a autoridade de pôr em questão o depoimento do antropólogo Bruce Albert, que não é norte-americano, mas um pesquisador francês da ORSTON/CNPq-UnB, que trabalha com os ianomâmi desde 1975, e prefere basear-se nos escritos de outro antropólogo, este sim norte-americano, Napoleon Chagnon, inspirador da onda difamatória que grassa pelo Ocidente contra os ianomâmi há quase 30 anos.
Já em 1978, a revista "Time" utilizou escritos e entrevistas de Chagnon para caracterizar os ianomâmi como brutos selvagens cujos hábitos de acasalamento seriam comparáveis aos dos babuínos.
Agora o senhor Cristaldo toma um artigo de Chagnon publicado na revista "Science" em 1988 – pelo qual foi duramente criticado por seus pare- e resolve fazer uma sinopse em português numa tradução livre que demonstra, dando-lhe o benefício da dúvida, que suas habilidades com a língua inglesa deixam algo a desejar: "adult males" transformam-se em "machos adultos", terminologia pinçada da zoologia que, aplicada a seres humanos, nada mais é do que uma expressão de grosseiro racismo.
Mas, ironicamente, para desencanto do senhor Cristaldo, o próprio Chagnon acata os resultados do relatório de Albert sobre o massacre de Haximu e cita-o extensamente no "Times Literary Supplement" de 24 de dezembro de 1993. "Burro calado passa por sábio" é uma máxima popular que merece mais atenção por parte dos "letrados" deste mundo.
Como se isso não bastasse, o senhor Cristaldo volta à carga e, no domingo passado (Mais! de 8 de maio), escancara sua veia racista ao proclamar que os ianomâmi nem sequer chegaram ao nível de organização dos chipanzés. De novo encosta-se na abalada autoridade acadêmica de Chagnon que, justiça seja feita, nunca proferiu nem insinuou tamanho disparate.
Tudo isso é forjado para chegar à conclusão (o que tem uma coisa a ver com outra só a lógica do senho Cristaldo pode perceber) que não houve nenhum massacre, pois não houve corpos de delito.
Sem precisar entrar nas razões culturais, já tratadas à exaustão, por que os ianomâmi cremam seus mortos, basta levantar alguns precedentes desta nossa esclarecida civilização.
Então, por falta de muitos dos cadáveres de suas vítimas, a Gestapo e as ditaduras do Cone Sul estariam absolvidas de seus crimes? O que são, afinal, os desaparecidos? Que jornalista é esse que se arroga o direito de tomar da pena e "dizer o que bem lhe convém, difamando um povo inteiro impunemente e, de quebra, pessoas como o chefe Raoni que Cristaldo, por conta própria, já julgou, condenou e passou a adjetivar como assassino?
Além de viverem há muitas gerações num território vorazmente cobiçado pela ganância de brancos, o que fizeram os ianomâmi para merecer essas campanhas renitentes de difamação étnica?
O que, afinal, motiva esse senhor Cristaldo, quase um ano depois do escândalo de Haximu, a ocupar seu tempo em tais diatribes totalmente desprovida de veracidade factual e de autoridade científica? A quem interessa tudo isso? Se no Mais! de 24 de abril essa pergunta ficava no ar, no Mais! de 8 de maio ela começa a ter uma resposta que aponta para os setores mais retrógrados das Forças Armadas.
Em seu último parágrafo, o jornalista sugere às Forças Armadas que se ponham em campo para coibir "esta conspiração antropológica". O senhor Cristaldo ignora também isto: enquanto, de 1987 a 1990, dezenas de milhares de garimpeiros entravam livremente nas terras ianomâmi, espalhando destruição ecológica, caos social e epidemias letais, os militares proibiam a permanência e entrada na área de antropólogos com longa vivência entre os ianomâmi.
Entretanto, quando a mortalidade indígena inundou os meios de comunicação e se transformou em vergonha nacional, o Estado brasileiro não teve pejos em chamar de volta esses antropólogos, juntamente com outros cidadãos há muito dedicados à proteção da vida e da terra ianomâmi, no afã de remediar o mal que esse mesmo Estado, principalmente por omissão, ajudou a criar. Nem aí o letrado jornalista acertou.

ALCIDA RITA RAMOS é pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e professora titular do departamento de antropologia da Universidade de Brasília e coordenadora do programa de pós-graduação. Trabalha junto os ianomami desde 1968 e já publicou dois livros e diversos artigos sobre eles

Texto Anterior: Excesso de foguetes preocupa EUA e Europa
Próximo Texto: O mundo estático da Belle Époque nacional
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.