São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Quinze minutos de fama no espaço unidimensional

LORENZO MAMMÌ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Brasil Século 20" deveria ser a mais importante exposição de arte moderna brasileira já realizada no país. Chega seis anos depois da monumental "Modernidade" do Museu de Arte Moderna de Paris, na esteira de um interesse internacional crescente. Quer ser uma mostra crítica, e não apenas uma antologia de valores já consagrados.
A tese a ser defendida pode ser resumida, acredito, em dois pontos. Primeiro: o modernismo brasileiro não nasce com a Semana de 22, nem se limita às atividades do grupo que se formou naquela ocasião. Haveria, nessa fase histórica, uma pluralidade de modernismos que o modernismo oficial esconde.
Segundo ponto: o verdadeiro surgimento de uma linguagem moderna brasileira, independente das influências estrangeiras e capaz de dialogar com elas em pé de igualdade, se dá entre as décadas de 50 e 60, com artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Mira Schendel (os três eixos da arte brasileira desse período, segundo o texto de Nelson Aguilar, curador da Bienal, que abre o catálogo).
Leituras parecidas circulam há tempo na crítica brasileira, e são muito razoáveis. De fato, é nas décadas de 50 e 60 que a cultura do Brasil se impõe ao mundo como um agente autônomo de modernização, não apenas nas artes plásticas, mas também na arquitetura, na poesia, no cinema, na música. Se este, porém, era o objetivo, não foi alcançado. A mostra é sobrecarregada, confusa, sem eixo.
Comecemos pelas duas primeiras seções, que dizem respeito à arte brasileira até a década de 50. Há aqui alguns achados importantes. A recuperação de Elyseu Visconti e sobretudo de Belmiro de Almeida como elementos de transição para o modernismo é um deles.
Annateresa Fabris e Tadeu Chiarelli lêem a atitude crítica de Mário de Andrade e de outros modernistas como uma oscilação contínua entre vanguarda e tradição. Infelizmente, o tema, bem abordado no texto, se perde completamente na exposição.
Perde-se porque não há um critério claro de seleção. Tudo vira relevante e, dessa forma, nada se sobressai. Com certeza, há mais de um modernismo na arte brasileira dessa época, mas também não há tantos modernismos assim. Artistas realmente inovadores se contam na ponta dos dedos: Segall, Malfatti, Tarsila, Goeldi, Guignard, o Grupo Santa Helena.
Incluindo todo mundo, a exposição se esvazia. Guignard acaba sendo relegado ao verso de uma parede, para deixar espaço a autores absolutamente secundários.
Goeldi tem menor destaque do que Rossi Osir. Nesse achatamento geral, os únicos artistas que chamam a atenção, por terem uma imagem já consolidada, são justamente aqueles que a exposição deveria redimensionar: Portinari, Di Cavalcanti, Brecheret.
Um discurso à parte merece a homenagem a Cícero Dias. O pintor pernambucano é significativo numa fase particular da sua produção, aquela marcadamente surrealista. Pelas obras desse período, merece ser homenageado. Mas a tentativa de mostrá-lo como artista importante até hoje não se sustenta. Torna-se constrangedora no painel suspenso, muito ruim, que ocupa o centro da exposição.
Se a falta de seleção já compromete as duas primeiras secções, nas duas seguintes leva ao fracasso total, porque aqui se trataria de sintetizar, focalizar experiências decisivas.
Curiosamente, os autores apontados por Nelson Aguilar como os agentes principais de transformação são justamente aqueles representados da forma pior: de Hélio Oiticica e de Lygia Clark não tem quase nada; de Mira Schendel, algumas obras bonitas, mas poucas, e numa colocação tímida, quase escondida. Amilcar de Castro não recebe nenhum destaque e Iberê Camargo está perdido no setor dedicado aos informalistas, como se fosse apenas um entre tantos.
Na verdade, parece existir um descompasso entre curadoria geral e curadores parciais, no que diz respeito às décadas cruciais de 50 e 60. Os neoconcretistas mais importantes se situavam numa posição crítica em relação ao abstracionismo construtivista, seja às correntes neofigurativas.
A forma como a exposição foi seccionada deixa de lado justamente essa colocação: Maria Alice Milliet cuida das tendências abstracionistas, que incluem uma parte limitada da produção desses autores; Walter Zanini, responsável pelas décadas de 60 e 70, prefere apontar para as tendências figurativas, pop e neodadá. Empurrados para uma terra de ninguém entre essas duas fases, os artistas que deveriam ser os protagonistas da exposição acabam desaparecendo do mapa.
Nesse quadro, a última seção da mostra se torna um caso à parte, completamente desligado de uma exposição que não pode lhe servir de premissa. É a única a mostrar um trabalho claro de curadoria, apesar de algumas limitações incompreensíveis (só puderam ser escolhidos artistas que já participaram da Bienal, como se isso fosse um critério estético).
São poucos nomes, em geral de boa qualidade, com espaço suficiente para mostrar com folga seu trabalho. Mas de onde vêm eles? Como explicar Tunga e Nuno Ramos sem a fase tropicalista de Hélio Oiticica, Paulo Monteiro sem Amilcar de Castro, Fábio Miguez sem Iberê Camargo?
Todas as grandes exposições, no Brasil, se assemelham a salões, onde a produção de um período é levantada e disposta no espaço estatisticamente, sem critério reconhecível. A razão disso é, acredito, estrutural. O Brasil apresenta hoje uma produção artística de ótimo nível, e uma geração de críticos que é superior, quanto a preparo teórico e capacidade de elaboração, à geração correspondente na Europa.
Todos eles, porém, se formaram na época da ditadura –fora das grandes instituições, numa atitude de oposição, quase de contracultura. Os cargos importantes nas instituições culturais sempre foram cargos políticos, ou ligados a grupos econômicos restritos. Criou-se uma defasagem sempre maior entre produção de ponta e atividade institucional.
Isso não significa que a arte de vanguarda tenha sido excluída das grandes exposições. Ao contrário, sempre esteve presente, mas dentro de estruturas que a acolhiam como acolheriam qualquer outra coisa: de forma indeterminada, passiva, não crítica. Nessa ótica, todo mundo tem direito a seus 15 minutos de celebridade.
Ser um curador, um "exposition maker", requer um metiê particular, que não tem nada a ver com o exercício da crítica escrita e da pesquisa histórica. Trata-se de criar situações, mais do que expor teorias. No Brasil essa figura ainda não existe, embora alguns talentos comecem a despontar. Faz falta, porque a arte brasileira já está muito na frente.

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