São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Longe da história em um galpão de subúrbio

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA REVISTA DA FOLHA

Para que serve uma exposição que pretende reunir um século de arte brasileira? Propor uma história, apontar os nexos, expor as rupturas? Evidenciar os diálogos e os conflitos que se estabelecem no interior desta produção, conferindo-lhe uma inteligibilidade e dotando-a de um sentido?
Se sim, esta Bienal Brasil, montada em São Paulo, está longe de cumprir seu objetivo.
Esta tarefa pressupõe uma inteligência que se disponha não simplesmente a um trabalho cumulativo, a um exercício de coletar autores e obras mais ou menos representativos desta aventura. Contar uma história, como se sabe, não é simplesmente justapor datas e nomes. É dotar este "continuum" de uma lógica, é identificar as forças que interagem e que resultam em evoluções, rompimentos e mudanças.
É impossível chegar próximo a este objetivo sem traçar relevos, fazer opções e sugerir ênfases que resultem numa leitura. Tratando-se de uma exposição e não de um livro (embora ele exista, numa bela edição), é na montagem, no modo de mostrar, na sintaxe que organiza os elementos expostos que se poderá fazer tal leitura.
A "Bienal Brasil" exime-se, o quanto pode, de realizar este tipo de intervenção. A organização da mostra parece aspirar a uma neutralidade que, antes de ser sinônimo de objetividade, é sinônimo de omissão. Medo de se comprometer, receio de eleger, temor de decidir.
A exposição parece cautelosamente planejada para que nada se sobreponha a nada, para que tudo se nivele, para que todos os representados tenham, tanto quanto possível, o mesmo peso, o mesmo valor, a mesma presença. Tanto faz se estamos diante de um Volpi ou de uma periférica Leda Catunda. É como se diante da organização da antologia de poetas brasileiros deste século João Cabral e Afonso Romano de Santana merecessem o mesmo espaço e tratamento.
Todos artistas aparecem com mais ou menos o mesmo número de obras –quase sempre muito pouco esclarecedoras da trajetória do autor e de sua inserção na história de um determinado projeto ou tendência coletiva.
O conta-gotas individual não é, infelizmente, compensado pela tentativa de reconstituir, dentro dos diversos períodos os momentos demarcados por intenções e linguagens comuns –a não ser de modo extremamente genérico. O que se tem, de fato, é uma grande confusão.
Tome-se, por exemplo, o módulo que trata do abstracionismo. Não há ali nenhuma indicação, nenhuma sinalização, nenhuma tentativa de diferenciar as correntes e de expor as tensões que se estabeleceram e se estabelecem entre elas. Na Bienal não se tem notícia de que houve em São Paulo um manifesto da arte concreta (Grupo Ruptura, que propunha um mergulho no universo industrial, no projeto e no design, com colorações ideológicas socialistas), não há registro de conflitos entre geométricos e abstratos "hedonistas" e mesmo entre os próprios geométricos. Nem mesmo aquele que foi o principal polemista da arte concreta em São Paulo, Waldemar Cordeiro, aparece no setor. Acabou sendo alojado nos anos 60.
O caso de Cordeiro revela outro problema da exposição: a opção por períodos genéricos e individualidades e não por formações de linguagens acabou reduzindo o alcance de diversos artistas que passaram por fases diferentes, tiveram importância em cada uma delas, mas ficaram limitados a um único espaço.
Além de Cordeiro (por que não aparece ao lado dos artistas do Grupo Ruptura, que aliás, acabaram separados dentro do mesmo setor e sem notícia de Feyer, um dos signatários do manifesto?) é o caso também de Hélio Oitica e Lygia Clark, que se inserem no período mais forte da arte geométrica e são fundamentais na passagem da tela ou do papel para o espaço, com o desenvolvimento de novas linguagens nos anos 60/70. Por que, então, Hélio e Lygia não têm trabalhos no setor do abstracionismo?
O resultado desta opção de montagem é desastroso: a exposição que deveria contar uma história acaba por promover a desistorização de obras e artistas. Olha-se aquele acúmulo e nada explica o que faz com que os trabalhos sejam como são. Não se sabe de onde vieram, o que os antecedeu, o que os conformou historicamente. Parece que tudo é fruto de impulsos arbitrários, ao sabor da subjetividade dos autores: uns gostam de pintar quadradinhos, outros gostam de fazer colagens, outros gostam das duas coisas. Volpi nem gostaria de pintar bandeirinhas, veja só, elas lá não estão.
A recusa de se fazer eleições é, além da recusa de se propor uma história, um fator empobrecedor quanto à qualidade das obras expostas. Como os melhores são tratados em condição de igualdade com os piores, a massa de maus artistas e maus trabalhos é francamente majoritária.
Sai-se do pavilhão da Bienal (que lembra galpão de subúrbio, o piso e paredes sempre maltrados) com a angustiante sensação de que a arte brasileira nesses cem anos é muito, muito rala. E, de fato, no atacado, é mesmo. O que só realça o erro de não se valorizar os momentos luminosos, individuais ou coletivos, que são saltos de qualidade dentro daquele panorama que, salvo pela quantidade, não preencheria o rol de entrada de qualquer museu decente do mundo.

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