São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Interesses alimentam a guerra de Ruanda

FRANK SMYTH
DO "THE NATION"

A queda de avião que matou os presidentes de Ruanda e do Burundi, em 6 de abril, é apenas o último ato da violência sofrida por esses países centro-africanos vizinhos. É possível que o avião tenha sido derrubado propositadamente.
Nos últimos anos, cerca de 100 mil pessoas morreram e mais de 1 milhão fugiram de ataques étnica e politicamente motivados. Integrantes do Exército do Burundi, dominado pelos tutsis, assassinaram o presidente anterior do país, um hutu, em outubro.
O Exército de Ruanda, dominado por hutus, é responsável pela maioria dos abusos cometidos nesse país, segundo a Human Rights Watch-Africa. Uma em cada oito pessoas em Ruanda está à beira da morte pela fome, segundo relatório de organismos assistenciais.
O terror recomeçou em Ruanda num momento em que o país tateava em busca de uma solução pacífica da guerra civil, que durou três anos e terminou em agosto passado. O conflito foi acirrado por governos de países que forneciam armas a Ruanda, num exemplo típico do "dumping" acelerado de armas para países subdesenvolvidos pós-Guerra Fria.
Em outubro de 1990, guerrilheiros da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), procurando derrubar o presidente Juvenal Habyarimana, invadiram o país a partir de Uganda. De várias partes do mundo chegava um fluxo constante de armas, incluindo fuzis Kalashnikov, morteiros de 120 mm, obuses de 122 mm e lançadores de foguetes múltiplos de fabricação soviética.
Milhares de civis e combatentes morreram e 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas casas. "Acho que todo mundo quer entrar nesse tipo de mercado", disse em 1993 o ministro da Defesa de Ruanda, James Gasana, acrescentando que a maioria dos países e dos fornecedores independentes de armas estavam menos interessados em quem ganharia a guerra do que em ganhar dinheiro com ela.
Hutus e tutsis
As forças governamentais são compostas de hutus e a guerrilha, de tutsis. O conflito entre as duas etnias data do século 17, quando o Reino de Ruanda foi implantado como Estado organizado e estratificado. A maioria dos aristocratas, chefes militares, altos funcionários e criadores de gado eram tutsis, hoje 14% da população.
O resto da população eram hutus, predominantemente agricultores de subsistência. As divergências não eram tribais, mas étnicas e sociais. Os tutsis historicamente se acham superiores aos hutus.
A monarquia tutsi dominou Ruanda até ser derrubada pelos hutus, em 1961, um ano antes de o país tornar-se independente da Bélgica –que no decorrer dos anos havia se aliado aos tutsis, mas trocara de lado no final dos anos 50. Um dos primeiros atos do novo governo foi a execução de cerca de 20 líderes tutsis proeminentes; multidões hutus massacraram 20 mil cidadãos tutsis.
Em 1973 o ministro da Defesa, o hutu Habyarimana, tomou o poder à força, prometendo ser justo com hutus e tutsis. Mas, em lugar disso, distribuiu a maioria dos recursos do país e dos cargos-chaves a familiares, amigos e associados vindos de sua região natal, no noroeste de Ruanda. Habyarimana governou o país como Estado unipartidário e os ministros eram em sua maioria seus parentes.
Depois da invasão dos guerrilheiros, o regime distribuiu fuzis a autoridades municipais, operando em cooperação com os milicianos de seu partido. Lideradas por altos funcionários do governo, essas milícias organizaram multidões de hutus agitados, que percorreram aldeias e campos à caça de tutsis.
Roubavam feijão e matavam cabras e gado. Antes de incendiar as choupanas de bambu, dividiam a carne e as roupas. Cerca de 2.000 pessoas morreram, a maioria a golpes de facão. O regime de Habyarimana prendeu arbitrariamente pelo menos outras 8.000. Centenas de pessoas foram espancadas, estupradas e torturadas.
Os guerrilheiros também cometeram abusos, executando centenas de civis suspeitos de colaboração com o regime de Habyarimana. Também forçaram um número desconhecido de civis ao trabalho escravo, como carregadores de suas tropas. Embora os abusos cometidos por ambos os lados tenham sido documentados por uma comissão internacional, tanto o governo quanto a guerrilha negam que isso tenha acontecido.
Mercado lucrativo
A maioria dos países e dos fornecedores de armas que facilitaram a carnificina em Ruanda também se nega a dar informações. A Rússia e outros ex-integrantes do Pacto de Varsóvia são hoje prolíficos fornecedores de armas.
O colapso do controle central em Moscou conferiu ampla liberdade de ação tanto aos governos quanto os funcionários encarregados dos estoques de armas. Como essas armas já foram pagas, elas podem ser colocadas no mercado mundial a preços abaixo do custo.
Os mercados e as guerras na África e na Ásia vêm sendo inundados de Kalashnikovs. Em março de 1992, as partes em conflito na África central podiam comprá-los no atacado por US$ 220 a peça; de lá para cá, os preços caíram para menos de US$ 200.
Entre os combatentes uniformizados, a maioria usava uniformes camuflados vindos da ex-Alemanha Oriental. Fornecedores africanos de armas vivendo em Bruxelas aparentemente facilitam a entrega de material de ex-países do Pacto de Varsóvia à África oriental.
Na África do Sul, a estatal Armscor vem há anos fabricando armas de alta qualidade para suas forças de defesa e segurança, que não podiam comprar no exterior devido ao embargo imposto pela ONU. A resolução que proibia vendas à África do Sul era respeitada, mas não a proibição às compras de armas desse país.
Segundo faturas da Armscor datadas de 19 de outubro de 1992, a África do Sul vendeu a Ruanda pelo menos US$ 5,9 milhões em armas leves, metralhadoras, morteiros e munição. Hoje, cerca de 3.000 soldados ruandeses estão equipados com fuzis R-4, superiores aos Kalashnikovs.
Contrato secreto
Um contrato de venda de armas assinado em 30 de março de 1992 diz: "Comprador e fornecedor concordam em não revelar o conteúdo deste contrato a terceiros". O comprador era Ruanda e o fornecedor o Egito, numa transação de US$ 6 milhões que incluiu fuzis, minas, explosivos plásticos, morteiros e artilharia.
Outros documentos indicam que a venda foi financiada por "um banco internacional de primeira categoria aprovado pelo Egito". Ruanda pagou US$ 1 milhão à vista e prometeu pagar mais US$ 1 milhão com dinheiro a ser obtido com a venda de 615 toneladas de chá, além de US$ 1 milhão anuais durante os quatro anos seguintes.
Poucos bancos privados, operando por lucro, assumiriam esse risco. Mas o Crédit Lyonnais o assumiu. Embora possa ser privatizado em breve, em março de 1992 ele ainda era um banco estatal francês. Na verdade, a venda foi um crédito sigiloso de assistência militar da França para Ruanda.
O crédito virou subsídio. O Crédit Lyonnais e Ruanda não esperavam a ofensiva da FPR em fevereiro de 93, na qual a guerrilha tomou a plantação de chá de Mulindi. O chá não foi colhido. Quanto à dívida com o Egito, o Crédit Lyonnais –por extensão a França– é obrigado a arcar com ela.
A disposição do governo francês de apoiar Habyarimana militarmente vem de sua determinação de manter credibilidade na África francófona. Desde a independência de Ruanda, em 1962, até o início da guerra, em 1990, o principal parceiro comercial, aliado político e patrono militar do país era a Bélgica. Com o início da guerra, a França assumiu esse papel.
A Bélgica é o único país da Otan cujas leis o proíbem de fornecer armas a um país em guerra. Pouco após a invasão da FPR, em 1990, a Bélgica cortou sua assistência militar a Ruanda.
No ano passado, após a publicação do relatório sobre direitos humanos, a Bélgica chamou seu embaixador de volta. As acusações de que a Bélgica teria ajudado a FPR são falsas e se devem ao ressentimento do regime de Habyarimana contra a neutralidade belga.
Novo Vietnã
Representantes franceses, porém, defendem o regime Habyarimana. "Foram mortos civis, como em qualquer guerra", disse o coronel Cussac, adido militar em Kigali e chefe da missão francesa de assistência militar.
"Você diz que a assistência militar é uma violação dos direitos humanos?", ele perguntou, afirmando que funcionários da embaixada dos EUA em Kigali apóiam a política francesa. "A França e os EUA têm uma história comum –por exemplo, no Vietnã." Na verdade, todos os diplomatas ocidentais não-franceses em Kigali criticam o papel da França.
Imediatamente depois do início da guerra, a França deslocou pelo menos 300 soldados da República Centro-Africana para Ruanda. Também apressou-se a enviar assessores, peças de helicópteros, morteiros e munições.
Depois da ofensiva da FPR, em fevereiro, o número de soldados franceses em Ruanda aumentou para pelo menos 680, abrangendo quatro companhias e incluindo pára-quedistas. "As tropas francesas estão aqui para proteger cidadãos franceses e outros estrangeiros", disse Cussac.
Mas diplomatas ocidentais, funcionários de organismos humanitários e oficiais ruandeses disseram que os franceses vêm fornecendo apoio de artilharia para a infantaria ruandesa.
O embaixador da França afirmou que a presença do país é necessária para defender Ruanda contra uma agressão de Uganda. É verdade que Uganda não tem se mantido imparcial durante o conflito, embora seu governo negue isso categoricamente.
"Temos um compromisso com a FPR", declarou um oficial do Exército de Uganda, em Kampala. "Se eles não tivessem nosso apoio, não estariam dando tão certo quanto estão."
Juntamente com os refugiados tutsis que serviram no Exército ugandense, cerca de 200 mil outros tutsis vivem em Uganda. Enquanto o presidente Yoweri Museveni tenta reconstruir o país, depois da destruição sofrida sob o governo de Idi Amin, esses refugiados vêm competindo com os ugandenses por água, terra e outros recursos.
Ao apoiar os guerrilheiros, o presidente Museveni parece menos interessado em conquistar território ruandês do que em facilitar a repatriação dos tutsis.
Enquanto Uganda abrigava e ajudava a armar a FPR, o Egito, a África do Sul e especialmente a França armavam o regime Habyarimana, responsável maior pela recente carnificina. Uganda nega, Egito e África do Sul se recusam a comentar e a França ainda não revelou inteiramente seu papel.

Tradução de Clara Allain

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