São Paulo, domingo, 15 de maio de 1994
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Palpitando na casa do vizinho

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

A nova moda nos países avançados é querer ditar normas para os países menos desenvolvidos no campo do trabalho. Isso já se revelou um desastre no passado e não será diferente desta vez.
Um diretor da Levi Strauss –fabricante das famosas calças "Levis"– telefonou para o seu gerente em Bangladesh, louco da vida, por saber que havia cerca de 40 menores trabalhando na fábrica local. De forma peremptória, deu a seguinte ordem:
– Você já devia saber que os consumidores americanos estão deixando de comprar calças fabricadas em países onde crianças trabalham na linha de produção. O que está ocorrendo aí é intolerável. Lugar de criança não é na fábrica, mas sim na escola! Por isso, demita-as todas, hoje mesmo.
O gerente –também americano, mas que conhece as condições econômicas e sociais de Bangladesh– manifestou sua plena concordância com o humanismo do diretor assim como sua firme disposição de cumprir a ordem. Antes, porém, decidiu aduzir:
– Cumprirei sua ordem imediatamente, mas gostaria de informar que os 40 menores que aqui trabalham são todos arrimos de família, sendo que na redondeza não há nenhuma escola. A demissão será uma brutalidade bem maior do que aquela contra a qual os consumidores americanos estão protestando. Devo prosseguir?
Do outro lado da linha, "ouviu-se" o mais mortal de todos os silêncios. Ao que o gerente aproveitou para acrescentar:
– Quem sabe, a Levi Strauss possa abrir uma escola na vizinhança e manter os alunos com bolsas de estudo que sejam suficientes para sustentar a si mesmos e as suas famílias... Mas, evidentemente, esta decisão não é minha. É uma mera sugestão...
A ponderação do gerente local assim como sua intempestiva sugestão explodiram como uma bomba na cabeça do diretor. Ele, que vive em Nova York, jamais imaginou uma redondeza sem escola e muito menos crianças sustentando adultos. Por isso pediu um tempo, a fim de levar o assunto ao seu "board".
Esta história é verdadeira. Está relatada na "Far Eastern Economic Review" do último mês de abril. O final foi construtivo. A empresa continuou empregando menores que, no seu tempo livre, passaram a frequentar uma escola mantida pela própria Levi Strauss.
É muito fácil falar em "dumping social" e ditar regras para outros países. O difícil é contribuir para a solução dos problemas dos que sofrem. O exemplo da Levi Strauss recomenda aos estrangeiros mais comedimento ao interferir na casa do vizinho. Sugere também a importância da ação efetiva para ajudar a resolver os problemas de quem tanto contribui para os seus negócios.

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