São Paulo, sábado, 21 de maio de 1994
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O canguru e o pronome

JOSUÉ MACHADO

Um comentarista político de TV disse entre outras coisas reveladoras que "os ministros eles são parte do governo".
Fora a surpresa da revelação, por que "os ministros eles são..."? Por que não apenas "os ministros são...", em português higiênico?
O sujeito duplo é fenômeno conhecido dos maoris, indígenas neozelandeses. Eles falam "O Maluf ele está na lista dos bicheiros", "O Fernandenrique ele acredita em Deus, por isso ele procurou o Pefelê, o Peperrê e o Petebê", "O Quércia, ele é impoluto", "O Lula, ele fala `acho de que chegaremos lá'," "A Justiça brasileira ela tarda mas falha, por isso o Grande Marajá elle continua em férias".
Os maoris eles são assim. Colam o pronome pessoal ao sujeito a que se refere, com ou sem vírgula, e são felizes. Essa onda foi trazida por um canguru que passou pela Nova Zelândia a caminho do Brasil. Canguru ou asno? Não importa. Alguns brasileiros gostaram e aderiram, principalmente comentaristas de rádio e TV. Não todos, claro, mas de todas as emissoras. O acadêmico José Sarney não é comentarista, mas utiliza o sujeito dobrado com a mesma frequência com que enverga o jaquetão. Disse ele outro dia: "O PMDB ele é um partido de homens livres." Depois parece que mudou de idéia.
Com apoio de tanto peso, não demorou, e o sujeitinho duplo ele pulou da linguagem oral para a escrita, como prova o seguinte trecho de um suplemento dominical de cultura: "Virgínia, dita `a nervosinha', está intimamente persuadida de que ela vai manter o diário..." Supimpa esse "Virgínia ... ela vai...".
Os ossos de Machado de Assis devem estar arrepiados na tumba.
Neo-fascista? Neofascista?
Arrepiaram-se também com o seguinte textículo do artigo de um liberal empedernido:
"O Dr. Paulo Maluf desistiu da candidatura à Presidência porque se deu conta de que não teria o apoio de todos os liberais e neo-liberais."
Há pelo menos dois problemas formais nessa comovente explicação. Primeiro, o prefixo neo deve ser seguido de hífen apenas antes de palavras começadas por vogais, h, r e s. Portanto, neoliberal, neofascista. Aliás, liberal e neoliberal são ótimas palavras para classificar os apoiadores do dr. Paulo. E convém admitir que o infernal hífen não deve humilhar ninguém.
Segundo, dar-se conta é espanholismo que não melhora nossa suave língua. Há até um filme argentino chamado "Darse cuenta". O que há de mal com notar, perceber, alcançar, compreender, entender, conhecer, distinguir, observar, atentar, verificar, reparar e outros? Dependendo da construção da frase, o articulista liberal poderia ter utilizado qualquer desses sinônimos para explicar a lamentabilíssima desistência do dr. Paulo.
Que tristeza trouxe essa desistência a nossas almas!

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversas publicações diárias.

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