São Paulo, sábado, 21 de maio de 1994
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Crianças emergem dos esgotos no Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Há 618 anos (precisamente dia 22 de julho de 1.376) acontecimentos insólitos abalaram a cidade alemã de Hameln, conhecida no resto do mundo como Hamelin. A cidade, banhada pelo rio Weser, e que fica à sombra do monte Koppelberg, gemia debaixo de uma praga de ratos que infestavam tudo.
Eles viviam sobretudo nos esgotos da cidade e se abasteciam com total sem-cerimônia nas despensas e guarda-comidas dos lares, nas prateleiras dos armazéns e confeitarias, debaixo do balcão de açougues e peixarias.
Aí apareceu um flautista, vestido com um macacão de várias cores feito um arlequim, e fez ao aflito alcaide e aos gordos edis de Hameln uma proposta. Pela paga de mil florins ele livraria a cidade de toda rataria. A quantia era simplesmente irrisória, diante do gigantismo da praga. O flautista poderia cobrar dez, cem vezes mais que ainda valeria a pena.
Acertado o preço, o flautista foi para o meio da rua, começou a flautear, e os ratos se puseram logo a subir dos esgotos, do porão das casas, como se as notas que saíam da flauta fossem puro queijo e toicinho. O flautista foi andando para o rio Weser e os ratos aos milhares, dizem mesmo que aos milhões, se atiraram nas águas em sucessivas cachoeiras, afogando-se todos, exceto um, que havia de ficar para contar a história do ponto de vista roedor.
Acontece que o alcaide, finda a praga, achou uma tolice –e com ele concordaram todos os edis– pagar àquele flautista saltimbanco a quantia de mil florins, tinha graça. O suicídio coletivo dos ratos de uma cidade era fato inédito, de acordo, mas o inédito acaba por acontecer pela primeira vez. Música é que não podia ter nada a ver com ratos.
Caso o flautista se contentasse com uns cinquenta florins, tudo bem, mas mil, pela madrugada! E logo naquela época do ano, quando a Prefeitura precisava reabastecer as adegas com vinho do Reno e clarete!
O flautista logrado voltou então à rua, começou a tocar de novo a flauta, e de todas as casas de Hamelin saíram correndo, num bando alegre e irreprimível, as crianças da cidade. Ninguém, nem gritos e lágrimas, conseguiram impedir que fossem todas elas no rastro do flautista, que caminhou para o monte Koppelberg, que afinal se abriu diante dele para engolí-lo e engolir todas as crianças, menos uma que ficou para contar o caso.
Como todo grande conto infantil, o que fala desta cidade alemã que de repente se viu órfã de todos os seus filhos pequenos é pavorosa em si mesmo. Mas seu horror não pára aí. Fica-se sabendo que o flautista, que não comete a maldade total de afogar os meninos, tornou-os para sempre sem lar, sem terra. Cresceram como puderam e viraram um estranho povo, cuja única história era de que provinham de uma prisão nas entranhas da terra. Eram diferentes, estrangeiros onde quer que estivessem.
Essa lenda alemã tornou-se história infantil de circulação mundial a partir do poema que compôs baseado nela Robert Browning (1812-1899). E o poema, em bonita edição bilíngue, acaba de ser lançado pela Musa Editora, de São Paulo. A caprichada tradução é de Alípio Correia de Franca Neto.
Supõe-se que a lenda original do flautista tenha ligação com o horror na vida real que foram as chamadas cruzadas de crianças, que ocorreram por volta de 1204 e 1212. Crianças e adolescentes desamparados, sem pouso, teriam sucumbido ao espírito religioso das grandes cruzadas, que se formavam desde o século 11, e se congregaram também sob o estandarte da Cruz, para irem libertar dos muçulmanos o Santo Sepulcro.
Grupos dessas crianças foram parar em Marselha, tentando embarcar para a Terra Santa e acabaram nas mãos de bandidos e tratantes que providenciaram o transporte e venderam a meninada como escravos nos mercados da África do Norte.
Por terríveis que sejam as lendas e história que guardaram registro do sofrimento de crianças, um dos prazeres que a gente colhe da leitura de textos como "O Flautista de Hamelin" está na idéia de que são sofrimentos idos e vividos, pesadelos extintos.
Não existem mais cidades como a de Hamelin, que padeçam de uma invasão tão radical de ratos, e nem haverá mais alcaides e edis que em lugar de usarem os recursos oriundos de impostos para alimentar e educar crianças depositem o dinheiro em suas próprias contas bancárias. Onde aparecerem, a lei há de engaiolá-los todos, um a um.
Acontece, no entanto, que quando acabei "O Flautista de Haselin" fiquei com a impressão de ter lido, em dias recentes, uma outra história que até certo ponto parecia plagiar a lenda alemã e os versos do poeta inglês. De repente lembrei. Cerca de um ano atrás a bela cidade de Porto Alegre descobriu, entre assustada e incrédula, que dentro dos seus esgotos moravam crianças abandonadas.
A coisa começou, se não me falha a memória, quando o prefeito Tarso Genro, aborrecido com a quantidade de ratos e baratas que infestavam a cidade, mandou limpar a rede de esgotos. Não havendo nenhum flautista disponível, garis municipais enfrentaram a tarefa, e, entre os ratos, encontraram as crianças.
Sentindo ele próprio o horror que sentiam todos os portalegrenses diante desse achado chocante, o prefeito tratou de recolher as crianças a abrigos do município. Acontece que as crianças, rebeldes, incompreensíveis, recusaram o convite e, dizendo-se tartarugas-ninjas, proclamaram seu desejo de continuar em suas casas de canos e bueiros.
Se se comparavam a tartarugas-ninjas é porque sem dúvida viam televisão. Mas onde? Nos seus tenebrosos subterrâneos? Quando saíam para estender a mão aos caridosos ou metê-la nos bolsos dos avarentos? Era difícil entender aqueles seres estranhos.
Por via das dúvidas o prefeito mandou colocar grades nos esgotos, ficando no ar a pergunta: grades para que as tartarugas-ninjas não voltassem à sua irrespirável cidade, ou para que, se lá voltassem, nunca mais pudessem reaparecer na Porto Alegre que vive à luz do sol e aos frescos ventos do Guaíba?
Não sei como se resolveu a questão, ou se ela foi resolvida de alguma forma. Mas constato que, no ano passado, a safra de milho foi recorde no Rio Grande do Sul (4,5 milhões de toneladas) e que foram também alvissareiras as de soja e de arroz. O gado abundou nos campos, seu couro contribuindo para um grande aumento da produção de sapatos do Vale dos Sinos e sua carne para a formação de gordas e fartas nuvens de churrasco por cima dos Pampas em geral.
Tudo, assim, foram bênçãos para o Estado e sua capital, em 1993. Como explicar o aparecimento dessas crianças estranhas, nada gaúchas, uma espécie de geração espontânea de cano de esgoto? Que fazer? Em Hamelin desapareceram ratos e crianças, separadamente, porque uma conta deixou de ser paga.
No Brasil, pelos visto, ratos e crianças estão nascendo uns por cima dos outros, nos esgotos. Ao flautista, se nos aparecesse, teríamos que pedir que "separasse" as espécies, tocando sua flauta. Assim as crianças poderiam voltar ao convívio humano.
Resta saber se de fato queremos isto. Ou se preferimos deixar o problema entregue aos policiais que, em julho do ano passado, mais ou menos ao tempo em que apareceram no esgoto os meninos de Porto Alegre, cuidaram dos meninos que emergiram do esgoto perto da igreja da Candelária, no centro do Rio.

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