São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Abas Kiarostami recusa convite para deixar Irã

"Não quero ultrapassar fronteiras", afirma o cineasta

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE CANNES

Abas Kiarostami, 64, recebeu um dos pequenos grandes prêmios de Festival de Cannes: o Roberto Rossellini. O prêmio é destinado a um novo cineasta que mais se aproxima do estilo neo-realista lançado pelo mestre no pós-guerra italiano.
Este ano ele é um forte candidato à Palma de Ouro com o emocionante "Através das Oliveiras".
Kiarostami nasceu em Teerã e ganhou projeção internacional há dois anos em Cannes, com o filme "E a Vida Continua".
Esta entrevista exclusiva à Folha foi feita em meio às incessantes homenagens que ainda lhe são prestadas pelo seu elegante estilo de filmar, que faz renascer o humanismo no cinema, através de implacáveis imagens documentais do Irã contemporâneo.

Folha - O senhor insiste com um segundo filme sobre o terremoto que devastou o norte do Irã em 90. Qual é a diferença do seu neo-realismo comparado à Itália do pós-guerra, que sofreu um terremoto moral e físico diverso, com bombardeios e decadência moral?
Abas Kiarostami - Esta pergunta implica em reflexões sobre os atos de Deus, como no caso do terremoto.
Uma coisa é esta tragédia física da natureza e outra coisa é a falta de humanidade no mundo atual, onde ninguém está preocupado com a falta de segurança das pessoas necessitadas, com a falta de moradia, de teto e de trabalho.
O que há de comum em meus filmes é esta preocupação humanitária.
Folha - E minha pergunta...
Kiarostami - Não sei distinguir diferenças... Meu novo filme tem um compromisso com a reflexão sobre os problemas das pessoas, que não sei se são diferentes aqui na França, no Irã ou no seu país.
Folha - Quais são os filmes que mais influenciaram a sua formação de cineasta?
Kiarostami - Hoje diria que é "A Estrada da Vida", de Federico Fellini. Este é o filme que melhor me transmitiu a insegurança sobre o trabalho e o amor.
Folha - Vejo que o senhor não trabalha com atores profissionais. O que o senhor pensa dos atores em geral?
Kiarostami - Atuar é um dos mais estranhos atos da capacidade humana. Como é possível a uma pessoa virar outra?
Admiro muito as poucas pessoas que realmente conseguem fazer isso bem. Em "Através das Oliveiras" trabalhei pela primeira vez com um ator profissional, Mohamad Ali Keshavarz, que faz o papel do diretor de cinema.
Folha - O senhor tem recebido convites para trabalhar fora do Irã, mudar de país, propostas de produções mais ricas?
Kiarostami - De fato, todas as oportunidades e convites que recebo continuam sem valor. Não sei para que servem se continuo com a certeza de que sei fazer o que exatamente sei que posso fazer...
Folha - Que fenômeno é este que o projeta mundialmente? Qual foi a barreira que o senhor ultrapassou e que os outros cineastas não conseguem?
Kiarostami - Não sei... O cinema iraniano que vocês assistem, por exemplo, não representa a totalidade do cinema do meu país.
Tem muita gente desconhecida fora do Irã fazendo há tempos um cinema que não está preocupado em ultrapassar fronteiras. Nunca pensei em ultrapassar fronteiras.
Talvez haja realmente muita gente preocupada em conquistar o mundo. Mas antes de pensar em passar fronteiras, penso que o certo é pensar em conquistar o seu próprio espaço nacional.
Folha - O que ainda é um tabu para o senhor na cultura iraniana, que o senhor acha que ainda não pode tocar?
Kiarostami - A sua pergunta é tão complexa e tocante que não consigo reagir de imediato sobre ela.
Mas prometo que vou pensar sobre ela por muito tempo, nem que leve meses. Vou ter que revisar toda a minha visão de vida.
Isso nada tem a ver com a tradição da cultura do meu país ou o cinema que faço. A resposta exige de mim muita responsabilidade.
Mas assim que eu tiver a resposta, tenha a certeza que vou encontrá-lo onde for para dar esta resposta que fico lhe devendo.

Texto Anterior: Palma de Ouro deve ficar com europeus
Próximo Texto: `Serpico' enquadra a corrupção na polícia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.