São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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Pele de cordeiro

Na história da humanidade, não são raros os exemplos de movimentos sociais de grande aceitação e respeitabilidade que acabam dando margem para deturpações e desvios, ou mesmo que são utilizados por grupos ou setores específicos para travestir a defesa de interesses corporativos exclusivos.
É inegável, por exemplo, que o anseio por moralização na esfera pública que se vem disseminando representa um alentador avanço na trajetória cívica e política do país. Isso não significa contudo que qualquer iniciativa que alegue ter um caráter moralizador seja automática e necessariamente correta, adequada ou mesmo desejável. O difícil, mas essencial, é distinguir o objetivo alegado para cada ato do seu significado concreto.
Assim é que causa profunda inquietação a notícia de que o Movimento pela Ética na Política acaba de aprovar a criação de um comitê destinado, entre outras tarefas, a fiscalizar o trabalho da mídia durante a campanha e apontar ao país comportamentos alegadamente antiéticos por meio de boletins.
A questão é delicada e merece análise cuidadosa. Chama a atenção, desde logo, que num regime democrático já é facultado a todos os cidadãos fiscalizar se a imprensa, o governo ou qualquer outra entidade estão ou não cumprindo a lei. A apreciação de eventuais denúncias, por sua vez, bem como a decisão sobre a ocorrência ou não de efetiva irregularidade, ainda numa democracia, é de competência exclusiva do Poder Judiciário.
O comitê proposto pelo Movimento pela Ética na Política representa um precedente muito perigoso e que deve ser evitado porque passa ao largo dessa indispensável estrutura institucional de fiscalização e cria uma instância privada, particular e potencialmente parcial de julgamento da mídia.
Por mais que não tenham força legal, as opiniões pessoais do membros desse comitê –pois é a isso que se resumirão seus boletins– vão se aproveitar da aura de legitimidade do Movimento, adquirindo caráter mesmo de uma condenação espúria porque feita por órgão não competente e sem qualquer tipo de garantia de isenção.
Perigo ainda maior é o decorrente de uma iniciativa assemelhada originária da Federação Nacional dos Jornalistas. A Fenaj aprovou no seu mais recente congresso nacional –evento, aliás, de representatividade questionável– e depois enviou ao procurador-geral da República proposta de instituição de um "ombudsman" e de "comissões de vigilância da mídia" para garantir uma suposta isenção desta durante a campanha eleitoral.
Não bastasse o fato de a entidade ser notoriamente ligada a um partido político específico, o próprio texto da proposta é tão escancarado no seu facciosismo, tão primariamente panfletário, tão ideologicamente viciado e tendencioso que torna ridícula –para não dizer grotesca– a pretensão da entidade de arrogar-se paladina da isenção e da imparcialidade.
A peça de fato fervilha de sofismas infantis como "...o governo Itamar Franco perpetuou a lógica neoliberal do governo Collor em sua política de privatizações, de abertura da economia brasileira, de arrocho de salários e de submissão às regras do sistema financeiro internacional", que, insistindo em permanecer na contramão da história, tenta falaciosamente confundir movimentos estruturais de alcance global com o desastre collorido. Ao menos a chancela da Procuradoria-Geral essa aberração não terá, já que em boa hora o titular do órgão rejeitou a proposta. Levá-la adiante, de fato, seria colcoar em risco a própria independência e liberdade da imprensa no país.
Cumpre notar, por fim, que para a imprensa essa liberdade já implica uma responsabilidade correspondente. Há mecanismos legais que protegem a sociedade contra eventuais abusos e irregularidades da mídia, e o recente caso do direito de resposta obtido pelo governador carioca, Leonel Brizola, contra a Rede Globo –lido no ar por locutor do próprio Jornal Nacional– deixa patente que esses mecanismos realmente funcionam na prática.
Já no que se refere ao aspecto apenas ideológico –e não puramente jurídico– a avaliação da conduta da imprensa, esta cabe aos próprios leitores. É nas mãos destes que está o juízo do comportamento e da credibilidade dos órgãos de informação, assim como o poder de rejeitar aqueles que considerar indignos da sua confiança. Um poder, aliás, mortífero.

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