São Paulo, sábado, 28 de maio de 1994
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O expurgo de sempre

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A cada novo plano de combate à inflação, a título de alteração do padrão monetário, o governo federal, maior devedor que credor perante a sociedade, modifica critérios indexatórios "pro domo suo", "garfando", na linguagem irônica de Roberto Campos, parcela do dinheiro da sociedade.
Muito embora o Plano Real seja mais ético, mais consistente e mais lógico que os anteriores, a tentação do confisco restou evidente no artigo 38 da lei de conversão da MP 482/94, que eliminou os demais indexadores na entrada do real, estancando sua correção no último cálculo, sem estancar o curso da inflação.
Em outras palavras, a perda do diferencial entre o último cálculo indexado e a entrada em vigor da nova moeda, com paralisação da correção monetária sem paralisação da inflação em URV, é o "real expurgo do real".
Tenho para mim que tal expurgo é inconstitucional. Em reunião do Conselho da Academia Internacional de Direito e Economia, há três semanas, Paulo Rabello de Castro entendeu, após minha exposição sobre aspectos legais e econômicos do plano, que o plano alicerçava-se no "confisco", pela redução do estoque da dívida.
Nesta reunião, entenderam também haver expurgo os acadêmicos Carlos Brandão, Benedicto Ferri de Barros, Celso Bastos e Edvaldo Brito, embora a inteligência dos acadêmicos Geraldo Vidigal, Carlos Longo e Hamilton Dias de Souza fosse de que a intenção confiscatória esbarrava na canhestra redação, que poderia gerar outra interpretação.
Para eles, entre o último cálculo do "índice condenado" e o dia 30 de junho haveria automática substituição pela URV, com o que a perda seria inexpressiva. Tal exegese decorreria da integração do artigo 4º, que determina a paridade entre o cruzeiro real e a URV até o último dia deste, e o parágrafo único do artigo 38.
Na última quarta-feira, Afonso Celso Pastore admitiu um expurgo da ordem de 25%, considerando uma dívida não corrigida em torno de 15 dias para os demais índices. Concluiu, todavia, de forma surpreendente, que o governo perderá mais do que ganhará.
Pessoalmente, entendo que haverá perda. O parágrafo único do artigo 38 não introduziu o critério de uma correção "pro rata temporis" vinculada à URV entre o último cálculo do índice em extinção e a entrada em vigor do "real". A meu ver, não o fez propositadamente, para reduzir, pelo confisco, parcela de sua dívida no mercado. Embora credor, é, o governo, mais "devedor", e a artificial manipulação dos índices traz-lhe polpudo benefício na posição devedora.
Entendo, também, que tal manipulação atinge a Constituição quer por violar o artigo 37, que consagra o princípio da moralidade administrativa (o governo lançou títulos a longo prazo corrigidos pelo IGPM e não honrará o compromisso assumido) quer na parte em que a Lei Maior proíbe o confisco e garante o direito à propriedade, que só pode ser desapropriada mediante justa e prévia indenização (art. 5º, inciso 24).
Não podendo atingir o direito adquirido (art. 5º, inciso 36), nem podendo expropriar patrimônio financeiro por uma manipulação de legislação ordinária (nesta hipótese costumam os juristas denominar a lei "ordinária" de "ordinaríssima") à evidência, a nova tentativa confiscatória será discutida no Poder Judiciário, que já sinalizou, no expurgo "collorido", que tal prática, se é admissível nas ditaduras, não tem guarida nas democracias.

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