São Paulo, domingo, 29 de maio de 1994
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Vaie, torcedor, xingue

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Napoleão Bonaparte perdeu a guerra por falta de uma boa vaia. Insisto: Napoleão começou a ser derrotado um ano antes, no instante em que partiu de Elba sob fulminante otimismo. Não havia quem lhe apupasse, quem lhe desfeiteasse. O exílio não lhe acrescentara à personalidade uma mísera porção de humildade. Napoleão teria triturado, teria moído Wellington não fosse o fato de ter-se considerado vitorioso antes da batalha.
Mas não é esse o nosso tema. Hoje falarei da seleção canarinho. Vi na televisão o momento em que os jogadores embarcaram. Postei-me novamente diante do vídeo na hora do desembarque, nos EUA. Eis o que me estarreceu: não ouvi nenhuma vaia, nenhum xingamento.
Note bem: não falo de um coro de vaias, não me refiro a nenhuma multidão sobre os cascos. Um protesto solitário já me teria satisfeito. Vi apenas uma penca de sorrisos. Ouvi aplausos unânimes. Houve até batucada na chegada. Tomado de ânimo napoleônico, Parreira chegou a prometer o tetra.
Assaltou-me uma nostalgia de 70. Naquele ano, a seleção saiu do Brasil sob vaias. O brasileiro otimista era um defunto. Os insultos da torcida foram para a seleção brasileira a vitamina negada a Napoleão. As lambadas do torcedor de 70 eriçaram o pundonor, a dignidade de nossos craques. Insultados, os jogadores vestiram armadura, meteram-se em brios. Trouxeram o caneco.
Hoje, observamos o oposto. Ninguém xinga a seleção, ninguém a ofende, não se ouve um único uivo contra o treinador. Derrama-se sobre o time um caudaloso, um espesso, um suculentíssimo otimismo. Aí é que reside o nosso dilema: aplaude-se a peça antes que as cortinas sejam abertas. Isso não está certo. Diria mais: está erradíssimo.
Ou começamos a vaiar a seleção agora, ou teremos de fazê-lo depois da Copa. Ou voltamos a desancar o Parreira, antes que escale o Raí, nosso Tom Cruise dos gramados, ou teremos de preparar para o técnico, passada a guerra da Copa, uma fogueira de Joana D'Arc.
Há 24 anos somos favoritos. Nosso tricampeonato é um ancião, uma múmia. Daí minha obsessão pela vaia. É preciso cutucar os jogadores, para eriçar-lhes as jubas. Do contrário, seremos representados na Copa por leões de circo. E faremos dos EUA uma nova Waterloo.

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