São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994
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Tese aponta saúde da democracia no Brasil

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

Folha - O sr. constata na tese, a partir dos dados das pesquisas do Datafolha, que mais da metade da população brasileira hoje prefere o regime democrático a outras formas de governo. Não há risco de retrocesso autoritário?
José Álvaro Moisés - Minha tese é que você tem hoje no Brasil o que alguns autores chamam de reserva de legitimidade. As pessoas tem uma crença inicial de que a democracia é melhor do que outras formas de governo. O mínimo necessário está formado. Precisa ver se isso vai ter base de continuidade para que o regime consiga se consolidar.
Folha - Mas em algum momento a democracia terá que mostrar que pode dar um jeito na miséria do país. Caso contrário, aumentará o número daqueles que olham para trás e dizem com saudade que eram felizes e não sabiam. Ou não?
Moisés - Nós fizemos pesquisa sobre esse ponto também. A maioria das pessoas que acham que a situação, sob o aspecto econômico, piorou ou ficou igual ao que era no regime militar defende ainda assim o regime democrático.
O Guilhermo O'Donnel (cientista político) levantou uma hipótese sobre o regime militar no Brasil que chamou de paradoxo do sucesso. O regime militar, pelo menos numa fase, foi bem-sucedido. Estabilizou a inflação, os salários cresceram, a classe média conseguiu comprar seu segundo carro.
Em suma, ao contrário da Argentina e do Chile, onde houve grau de repressão muito elevado, a memória dos brasileiros em relação ao período militar não é tão ruim. Eu quis checar isso e vi que não bate. Se você cruzar os dados obtidos pela pesquisa, vê que há uma maioria que defende a democracia, apesar de achar que a situação econômica está pior hoje.
Folha - Então, pelo menos em matéria de apego pela democracia, podemos dormir tranquilos?
Moisés - Este é o ponto central do meu trabalho. A mesma maioria que se diz é crescentemente democrática tem uma avaliação extremamente rigorosa e crítica em relação aos políticos e aos partidos. Há uma atitude de rejeição, de não-reconhecimento na ação dos políticos, dos congressistas. Cerca de 80% das pessoas são contra a classe política em geral.
É um paradoxo. Há uma adesão a uma idéia genérica, abstrata de democracia que não obstante convive com a crítica pelo modo de funcionamento concreto da democracia brasileira.
Folha - O que tirar disso?
Moisés - Primeiro, que há uma relativa autonomia entre as duas coisas. Começa a a se formar no eleitorado brasileiro a consciência de que uma coisa é o regime e outra são os governos e os políticos. Estes você troca através de eleições, o regime você não troca.
Em segundo lugar, cruzando a adesão à democracia com a crítica aos políticos, pode-se perguntar se essa crítica não compromete, no médio e no longo prazo, a própria democracia. Minha pesquisa aponta que a resposta é afirmativa. Pode comprometer, mesmo que isso ocorra lá adiante.
Folha - Se o Lula ganhar a eleição, há risco de golpe? É razoável pensar em possibilidade de ruptura institucional ou não?
Moisés - A reversão autoritária sempre está no cardápio das possibilidades, mas pessoalmente não acredito nisso. Não existe base de apoio a golpes na sociedade.
O Exército e as Forças Armadas em geral não têm mais uma liderança golpista forte.
Folha - E os políticos que participaram do regime militar e ainda hoje são lideranças fortes, tais como Antônio Carlos Magalhães e Paulo Maluf. Eles estão preparados para engolir Lula?
Moisés - O Lula, se ganhar, vai governar. Você tem que ver que a direita se partidarizou, entrou para o jogo institucional. Isso se deve em grande parte ao PT. Foi a organização do PT que obrigou os demais partidos a se organizarem para competir.
Folha - A aliança do Fernando Henrique com o PFL desfigura o PSDB e o candidato ou, pelo contrário, é coerente com sua plataforma política, que parece ser de todas a mais afinada com o neoliberalismo (privatizações, abertura da economia etc.)?
Moisés - Tenho o maior respeito pela carreira acadêmica do Fernando Henrique, mas acho que há um erro de cálculo na candidatura dele. Ao contrário do que diz o (filósofo José Arthur) Giannotti, não acho que seja a vez de o centro assumir o poder. Na verdade, eles representam hoje a centro-direita, mesmo que não queiram.
Precisamos de um projeto para o país de centro-esquerda, que se dirija às grandes questões sociais do país. Isso Fernando Henrique não pode fazer. Quem vai buscar apoio político em José Sarney e Antônio Carlos Magalhães não é capaz de cimentar o arco de forças sociais e políticas que podem fazer as reformas que o Brasil precisa. Fernando Henrique já escreveu sobre e representou o mudancismo. Hoje representa o continuísmo.
Folha - Por falar em continuísmo, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos identifica no seu novo livro "Regresso - Máscaras Institucionais do Liberalismo Oligárquico" uma espécie de conluio entre jornalistas, intelectuais, políticos e empresários, com epicentro em São Paulo, a favor das reformas institucionais.
Ele critica a necessidade das reformas e critica seus autores, que em conjunto chama de "neo-oligarcas". Parece que o livro não o agrada. O sr. vestiu a carapuça?
Moisés - O Wanderley é muito competente, mas esse livro é uma contradição na obra dele. Foi ele quem nos chamou a atenção para o fato de que a crise de 64 se desencadeou, em boa medida, pela fragilidade do sistema partidário de então, que impedia a formação de maiorias estáveis no Congresso e permitia coalizões "ad hoc", ao sabor das circunstâncias.
O que ele diz agora, nesse "Regresso"? Vai contra as reformas políticas que poderiam fortalecer os partidos e dar governabilidade ao país. Além disso, o Wanderley comete uma enorme injustiça ao chamar intelectuais, jornalistas e políticos que defendem as reformas de neo-oligarcas. É uma definição genérica. Não dá para colocar todos no mesmo saco.
Folha - Mas não seria exatamente esse o grande achado do livro? Ver interesses e táticas comuns em grupos políticos e atores sociais aparentemente dispersos.
Moisés - Não há interesses comuns. Os intelectuais, como eu, vêem falhas no sistema político no Brasil. Isso é óbvio, precisa mudar. Em primeiro lugar, há distorções na representação política que precisam ser revistas. Em segundo lugar, temos que maximizar a governabilidade para que o próximo presidente possa finalmente atacar os problemas do país.
Folha - Como você avalia a proposta de uma revisão exclusiva?
Moisés - A Constituição de 88 tem dois problemas particularmente graves. De um lado, um sistema de relação entre Legislativo e Executivo que é próprio de sistemas semipresidencialistas, como o sistema francês. Isso gera permanentemente ingovernabilidade. De outro lado, a Constituição não resolveu o problema da preeminência dos militares na vida política brasileira. Manteve um papel tutela para as Forças Armadas que eu acho pelo menos discutível.
A Constituição também abrigou muitos corporativismos. É absolutamente surpreendente que no final do século ainda exista a idéia do sindicato único no Brasil.
Todas essas questões indicam que precisamos de uma reforma profunda na Constituição. O processo de institucionalização democrática precisa ser completado. Serei favorável que o próximo governo, assim que eleito, proponha a convocação de uma assembléia nacional constituinte exclusiva para funcionar num período curto de tempo, de três a quatro meses.

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