São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994
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A propaganda e a Aids

HELCIO EMERICH

Depois de uma fase de grande expansão na década de 80 (com crescimento anual de até 40%), o mercado americano de preservativos entrou em ritmo de câmera lenta. Multiplicam-se as campanhas que tentam posicionar o produto como única opção segura para a prevenção da Aids (sem contar, é claro, a abstinência sexual), mas as vendas praticamente estacionaram nos últimos anos.
Alguns analistas de marketing dos EUA acham que essa pausa pode ser atribuída a vários fatores e, o mais surpreendente deles, é a volta, entre os adultos jovens, da atitude segundo a qual a doença só acontece com "os outros" (de acordo com o Center of Disease Control and Prevention, do governo americano, só 48% dos adolescentes sexualmente ativos usa camisinha).
Tomando como exemplo a experiência brasileira, tenho comigo que a comunicação (leia-se campanhas educativas ou de vendas do produto) é em grande parte responsável por essa resistência. Para início de conversa, já que a economia é livre, o ônus de educar o cidadão e de induzí-lo ao uso deveria caber muito mais aos fabricantes de preservativos que lucram com a sua comercialização e com a disseminação da doença, do que ao Estado, reconhecidamente incompetente para resolver problemas de saúde pública. E os anunciantes que atuam nesse mercado insistem nas campanhas com abordagens superficiais, que disfarçam ou omitem a gravidade da Aids e relativizam o papel da camisinha na sua prevenção.
Lembro-me de um comercial que vi na TV americana, ano passado, em que um casal de "latin lovers" trava um rápido diálogo à beira da cama. Ela vai desabotoando a blusa, ele começa a tirar os sapatos. Ela: "Você trouxe?". Ele: "Esqueci!". Ela: "Então esqueça". E a mulher se enfia sob os lençóis apagando o abajur para dormir, enquanto o locutor off recomenda que os homens devem ter sempre preservativos no bolso etc. Nos EUA, como no Brasil, nenhum comercial mostra abertamente um casal gay, mesmo sabendo-se que a maioria dos aidéticos é composta por homossexuais masculinos. Também os anúncios de mídia impressa não escondem o temor dos anunciantes em ir fundo no tema. Um deles, assinado pela Trojano, a marca de preservativos mais vendida nos EUA, diz no título: "É um atraso interromper para colocar" (a camisinha). E no sub-título: "Seja realista: o calor de um momento pode queimar o resto da sua vida". Outro, publicado pela LifeStyles, mostra apenas o rosto de uma mulher em "close", dizendo: "Faço tudo pelo amor. Mas não estou disposta a morrer por ele". Pura poesia.
Um conhecido medalhão da publicidade brasileira tem declarado em entrevistas que as campanhas contra a Aids (ou a favor da camisinha) devem ser "alegres e descontraídas", pois é preciso "desmistificar a doença". Trata-se de uma visão divertida mas irresponsável do problema. É fundamental que a comunicação crie o mito terrível e assustador da Aids, em toda a sua saga de desumanização e perversidade, em todo o seu espectro de horror e morte.

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