São Paulo, segunda-feira, 6 de junho de 1994
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A ALCSA e a agonia do mercado comum

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS

"Há pessoas que são como alguns relógios: indicam uma hora e soam outra"
(provérbio dinamarquês)
A posição oficial do governo brasileiro é de que a Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA) "não desconhece a nossa prioridade ao Mercosul, mas a complementa" (ministro Celso Amorim, Folha, 14/4/94, pág. 1-3). É comum, ainda, apresentá-la como um prolongamento do êxito do Mercosul para a América do Sul. Todavia, há uma larga distância entre o discurso da complementaridade e a prática da excludência.
A ALCSA, proposta brasileira em fase de negociação, deve constituir uma rede de acordos de livre comércio entre países sul-americanos, através da Aladi (Associação Latino-Americana de Integração), criada em 1980.
O Processo iniciar-se-ia em 1º de janeiro de 1995, chegando em dez anos ao estágio de Zona de Livre Comércio (ZLC). Pode tornar-se desequilibrado, na medida em que o Brasil aceita que os parceiros desgravem tarifas em ritmo mais lento do que o seu.
O Mercosul é um compromisso firmado em março de 91 entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, através do Tratado de Assunção, de constituir um Mercado Comum até 31 de dezembro de 1994.
Tal estágio de integração pressupõe, além da troca de bens sem tarifas alfandegárias entre os membros (ZLC) e de uma Tarifa Externa Comum (TEC) em relação a terceiros (União Aduaneira), a livre circulação de serviços, pessoas, capitais, tecnologia, entre outros quesitos.
Suspeita-se que o Executivo, ainda que declare o contrário, julga hoje o Mercosul como um devaneio da era Collor, irrealizável nos termos em que foi concebido, e procura depreender dele o que trouxe de positivo: o incremento do comércio regional.
Posto que este teria alcançado os limites de sua elasticidade, nada melhor do que ocupar novos mercados, através da ampliação geográfica da área do livre comércio, não de sua evolução a uma forma mais avançada de integração, qual seja, o Mercado Comum.
O não-cumprimento do Tratado de Assunção reveste-se de grande significado. O governo parece satisfeito se, em 1º de janeiro de 1995, alcançar apenas um arremedo de ZLC, ao mesmo tempo em que afirma ser o Mercosul um retumbante sucesso.
Contudo, para avaliar a eficácia do empreendimento, é preciso verificar os objetivos inicialmente fixados, o que nos demonstra que o Mercosul é um estrondoso fracasso.
Estamos em junho de 1994 e não temos a TEC para os produtos fundamentais de nossas economias. Não existem definições sobre as instituições comunitárias, tampouco sobre o processo de tomada de decisão, como a introdução do voto ponderado ou qualificado. Os consumidores não sentem nenhuma melhora na qualidade de vida e dos produtos. Parcos setores da economia foram beneficiados.
As fronteiras mantêm seus antigos problemas jurídicos, ainda tratadas como zona de segurança nacional. Não houve melhora das ligações físicas; as rodovias continuam em calamitoso estado e a decantada rota do Mercosul é aspiração de alguns visionários. A simples ponte São Borja/São Tomé, objeto de diversas declarações presidenciais, permanece sendo apenas um esboço.
Portanto, se o governo considera o Mercosul um sucesso, pretende que ele seja apenas o que conseguiu ser até hoje: uma operação de comércio exterior, bem-sucedida para o Brasil. Mas o que dizer do recorrente déficit da balança comercial Argentina? Não há perspectiva de aproximação econômica, a longo prazo, quando inexiste equilíbrio de trocas.
Vale fazer notar a desfaçatez dos que criticam a precipitação do governo Collor (de fato inaceitável), mas estão a defender a atual proposição da ALCSA.
Ora, a mesma ilegitimidade que comprometia o Tratado de Assunção, pela ausência de discussão com a sociedade civil e pela falta de profundos estudos a orientar seu encaminhamento, está a viciar a nova proposta brasileira.
A situação se repete, movida por um governo em final de mandato, que prevê as primeiras conseqências da ALCSA exatamente para o dia da posse do novo presidente.
Além disso, sob o pretexto da celeridade, almeja-se dispensar os acordos constitutivos da ALCSA de aprovação pelo Congresso Nacional, fazendo com que não contenham matérias como salvaguardas, solução de controvérsias e dispositivos anti-"dumping".
É inadmissível que se altere a ordem natural entre (1) a elaboração de um projeto de desenvolvimento, que redimensione e organize a economia brasileira; e (2) a liberalização do comércio. Sabe-se que a idéia da ALCSA não poderá sustentar-se sem que o Brasil aumente suas importações. Seria este o nosso projeto?
Como desgravar tarifas e administrar a repercussão de tal liberalização sem ouvir previamente os setores interessados, como as classes empresarial e sindical, além dos produtores agrícolas? Lançá-los em uma ZLC sem a necessária harmonização de políticas e união aduaneira certamente implicará, no futuro, custos sociais maiores que os ganhos do livre comércio.
A experiência européia tem demonstrado a impossibilidade de participar simultaneamente de um Mercado Comum e de uma ZLC. Os membros da União Européia não integram a Área Européia de Livre Comércio (EFTA).
O próprio Brasil alegava a filiação da Bolívia ao Pacto Andino para recusá-la no Mercosul. Existe, portanto, do ponto de vista formal e teórico, total incompatibilidade entre Mercosul e ALCSA, salvo se admitirmos que o Mercosul pretende ser tão somente uma zona de livre comércio.
Não se pretende discutir os eventuais méritos da ALCSA. Certamente o intercâmbio comercial brasileiro na América do Sul pode ser elevado a patamares superiores.
O Brasil segue a lógica da liderança que pretende exercer no subcontinente e quer construir um bloco coeso ao Sul, dificultando a absorção individual de cada membro pelo Nafta (especialmente o Chile) e obrigando os EUA a negociar coletivamente.
A posição dos parceiros no Mercosul é, no entanto, diferenciada: contrário está o Uruguai, o que evidenciou-se na última reunião de Buenos Aires. O Paraguai vislumbra no adiamento do Mercosul a possibilidade de não questionar suas zonas de exportação de produtos de terceiros países. A Argentina, por sua vez, sentir-se-á descompromissada para tentar aproximar-se de forma isolada do Nafta, o que vem ensaiando há alguns meses.
Resta claro que a ALCSA, nas condições em que está sendo proposta, enterra o sonho de um verdadeiro Mercado Comum na Bacia do Prata. Mas é inaceitável que o governo brasileiro redimensione o projeto sem ouvir as vozes regionais, fundamentalmente a região Sul, que há anos prepara-se para a integração.
A persistir a atual postura governamental, o Mercosul manter-se-á adstrito a simples busca de vantagens comerciais de forma imediata e setorial.
Um novo cronograma, com bases realistas, deveria priorizar a atualização tecnológica dos segmentos afetados: o incentivo oficial para dinamizar setores e regiões historicamente deprimidas; e programas que resgatem grande parcela da população dos quatro países, hoje à margem da sociedade de consumo. Este é o Estado forte que almejamos, absolutamente oposto àquele cuja força resume-se à excessiva centralização.
Na verdade, a quatro meses das eleições presidenciais, o Brasil precipita, através da ALCSA, uma proposta de liberalização de mercado que só teria sentido se associada a um coerente e democrático projeto de desenvolvimento.
Neste percurso, é fundamental que o governo brasileiro mostre a sua face, discutindo abertamente o destino que atribuirá, no apagar das luzes de seu mandato, aos compromissos assumidos em Assunção.

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