São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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Omaha beach

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Seis de junho de 1944 –eu estava no seminário. Pegara uma gripe e me mandaram para a enfermaria; podia transmitir a doença aos colegas de dormitório. Ainda bem: na enfermaria havia mordomias. Uma delas era o rádio do médico que ali dormia, o Pepe, filho de um espanhol fugido da Guerra Civil e que viera trabalhar na cozinha do seminário. Trouxera o filho, rapaz esforçado. O padre reitor pagou os estudos do garoto, que se formou em medicina e continuou morando conosco, com um quarto na enfermaria, onde atendia aos alunos doentes.
Pepe tinha um rádio, "Pilot", se não me engano, de imensas e conturbadas válvulas. Ouvia baixinho, pois sabia que os alunos não podiam ser contaminados com as notícias do mundo.
E a notícia do mundo, naquele dia, à noite, foi o anúncio de que houvera o desembarque na Normandia. Eu não tinha condições de avaliar a importância do fato; estava desinformado e, até mesmo, desinteressado. Minha prioridade era ser um bom aluno, se possível um santo aluno, para ser um bom padre. O resto eram coisas do mundo.
Mas Pepe ficou excitado. Saiu de seu quarto; eu já estava dormindo. Ele fora colega de primos meus na faculdade e gostava de mim. Explicou-me o que estava havendo: os dias de Hitler estavam contados. Lembro que só lhe fiz uma pergunta: "Está morrendo muita gente?". Pepe fez um gesto redondo, enorme, como se descrevesse a órbita de um planeta no cosmos.
Não consegui dormir mais, apesar da febre. O episódio, em si, deveria me alegrar, tanto quanto ao Pepe. Afinal, Hitler era a Besta Fera do Apocalipse, e o número da Besta era 666 –segundo padre Cipriano, que fizera um cálculo complicado e garantia que Hitler era realmente o anti-Cristo previsto nos textos sagrados.
Eu pensei no gesto do Pepe envolvendo o universo como indicador do número de mortos. Mais tarde, soube que um coronel americano, na praia de Omaha, na hora do massacre, havia dito: "Aqui só há dois tipos de homem: os que já morreram e os que vão morrer". Eu estava na praia de Omaha.

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