São Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 1994
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A OEA e a crise haitiana

RICARDO SEITENFUS

"Os conceitos ocidentais de representatividade, justiça e democracia são valores desconhecidos no Haiti" (Paulo Mendes de Carvalho, diplomata brasileiro falecido em serviço no Haiti, em 1993)

A 24ª Assembléia Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos) reúne, em Belém, representantes de mais de 60 países, entre membros e observadores. O presidente deposto do Haiti, Jean Bertrand Aristide, é convidado especial.
Na pauta, a crise haitiana, paradigma da nova conjuntura mundial, a questionar as organizações internacionais em sua emblemática defesa da democracia.
A OEA, na Conferência de Santiago (04/06/91), definiu a democracia representativa como "a forma de governo da região" e "condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento".
A norma instala o paradoxo: sem abrir mão do dogma da não-intervenção, a OEA constrói o da elegia democrática.
Ironicamente, o Haiti, país aparentemente mais fraco e miserável entre os seus membros, põe à prova as novas diretrizes da organização.
Alvo de pressões internas e internacionais, os militares que sucederam à chamada "era Duvalier" consentem com a realização de eleições das quais resulta vencedor o salesiano Aristide.
Figura mítica, detentor de oratória iluminista, agressiva e popular, sua vitória surpreende a oligarquia civil e os militares, que o destituem após alguns meses de governo (30/09/91), gerando a crise.
O golpe opera-se em contextura política singular. A longa ditadura de "Papa" e "Baby Doc" deixa como herança terríveis milícias. Os "tonton macoutes" e os "attachés" praticam livremente a rapinagem, a cobrança de pedágios e propinas, prisões ilícitas e assassinatos.
Lega, ainda, a radical polarização entre movimento popular e ditadura, onde o opositor político é considerado como um inimigo a ser exterminado física, moral e politicamente, através de brutais práticas como o "Père Lebrun" e a "bastonnade".
No Haiti, entre o Estado e o povo não há diálogo: há ameaça e permanente sobressalto.
Já é notório o apoio de setores do governo republicano dos Estados Unidos aos militares golpistas. Deve dizer-se que os EUA mantinham uma espécie de fio condutor, durante a Guerra Fria, qual seja, a luta obsessiva para conter a URSS.
A modificação substancial da posição dos EUA em relação ao Haiti, que advém da vitória de Clinton, exemplifica a existência de uma nova política externa norte-americana, que chamo de "ziguezague", estreitamente vinculada à evolução de sua política interna.
Os militares haitianos estão dispostos a distender ao cabo a crise. Mantêm relações privilegiadas com a vizinha República Dominicana, o Vaticano, o Pentágono e a oposição republicana a Clinton, construindo uma trincheira contra o uso da força militar. Com eles está ponderável parcela da opinião pública norte-americana.
No entanto, está claro hoje que a democracia, para ser implantada no Haiti, necessita do apoio internacional.
A mediação exercida pela OEA e pela ONU (Organização das Nações Unidas) tem sido um evidente fracasso. Todos os ajustes firmados foram descumpridos, com destaque para o Acordo da Ilha do Governador, que estabelecia o retorno de Aristide em 30/10/93.
Mesmo as efetivas sanções a que se procedeu, como o embargo, atingem antes de mais nada a indefesa população civil, vitimada pelo próprio regime militar e pela ação do coletivo internacional.
É também equivocado associar a deposição do padre Aristide à disputa entre esquerda e direita. A dicotomia da crise haitiana refere-se precisamente à correlação de forças que empurrará ou não a oligarquia que aprisionou o Estado para fora dele.
Quanto à OEA, poderia invocar o Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), como o fez em 1965, quando da crise da República Dominicana.
Naquela oportunidade, vários países, inclusive o Brasil, enviaram tropas à Ilha Hispaniola para afastar o progressista Bosch, em apoio ao até hoje presidente Balaguer.
Ausentes as condições políticas para fazê-lo, deveria a OEA delegar, sob certas condições, aos EUA a segura recondução de Aristide ao governo haitiano.
Não haverá, contudo, verdadeira democracia no Haiti caso não se garanta, via cooperação internacional, um projeto de desenvolvimento que enfrente as condições inaceitáveis às quais está submetida a pequena população haitiana. Cabe lembrar Pascal: "a justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica".

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais em Genebra, é coordenador do Curso de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS). Participou da missão civil da OEA no Haiti em junho de 1993.

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