São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994
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Ir à Copa é um sofrimento; quanto mais longe melhor

ROBERTO MUYLAERT

Artigo do presidente da Fundação Padre Anchieta sobre o Mundial dos EUA.
Houve tempo em que só quem estava no local do evento era espectador. Quem assistia à Copa do Mundo in loco tinha, no retorno, não apenas a vantagem de ser o centro das atrações, como também o privilégio de poder criar a sua própria versão dos fatos. Surgiam então as grandes polêmicas, como aquela entre Armando Nogueira –– que julgava o escrete húngaro imbatível na Copa de 54 –– e Nelson Rodrigues, que considerava"cretino fundamental" aquele que não vê o futebol brasileiro como o melhor do mundo.
Hoje quem chega perto do evento é um sofredor. Primeiro porque faz parte da minoria das arquiibancadas: dezenas de milhares, contra o bilhão de pessoas assistindo ao mesmo evento com muito mais detalhes, a milhares de quilômetros de distância.
Sendo minoria absoluta em relação à plateia total, o torcedor já não interessa muito, a não ser como alvo da implacável segurança, ou como massa de manobra para alguma campanha de ambush marketing, nome que enriqueceu o meu glossário de expressões mercadológicas graças à torcida número 1.
O torcedor agora é apenas pano de fundo para quem está em casa, ou para os próprios jogadores em campo, já que ninguém conseguiu ainda dar emoção à fria objetiva das câmeras, mesmo que elas representem um bilhão de torcedores fanáticos, pulando em suas poltronas.
E se você chegou lá por meio de alguma das dezenas de promoções que "levam você à Copa", eis o que o aguarda: na imigração guarde o seu entusiasmo e o seu reco-reco. A fria recepcionista que o espera no aeroporto dos Estados Unidos não sabe que raio de coisa é a Copa, palavra batucada no seu ouvido de 80 a 100 vezes por dia, enquanto você está aqui. A agente federal está mesmo de olho no seu eventual carregamento de crack, que todo passageiro procedente dos países finalistas Bolívia, Colômbia e Brasil pode estar levando, segundo ela. Aquele seu sorrisinho simpático de turista que chegou lá também não vai colar. Não será retribuído nem por aquela moça, que só sabe dizer "next" para fazer a fila andar, muito menos pelo pessoal da imigração, que só quer saber quanto tempo você vai ficar, quanto dinheiro tem e o que veio fazer: Cópa? Côpa??
De repente você descobre que aquela loucura daqui não tem lá. Ruas decoradas, edições especiais de jornais, dezenas de milhões de dólares em anúncios na tevê, quem viaja na janelinha, porque o técnico é cabeça dura, se a transmissão deve cortar a cabeça do jogador para evitar a placa ou não, a que horas você sai do serviço em dia de jogo do Brasil, sexo antes ou depois das partidas...
Quando chega ao hotel você percebe que a CNN segue falando sobre a Bósnia, enquanto David Letterman, o maior showman da tevê americana está entrevistando um jogador de ... beisebol.
Aí você fica feito alma penada à busca de informações, as mesmas que você tinha em dose de elefante, até ontem à noite.
Só que lá, quem estiver comentando a Copa vai falar de todas as seleções e não só da sua.
Você então vai se dar conta que no Brasil ninguém cobre a Copa, mas sim o Brasil na Copa. Acredite: você vai começar a sentir saudade da cara do Parreira, e do Zagalo também. É que eles passaram de mansinho a fazer parte do seu cotidiano, abruptamente interrompido pela viagem, resultado da sua tremenda sorte naquela promoção. E pasme, você vai sentir saudade também do massacre dos anúncios ufanistas e das exortações piegas que a televisão criou para que você faça parte do coral das cervejas.
Finalmente você vai perceber que aquilo que você chama de Copa só existe no Brasil. Quem viaja fica privado dela.
Que bom que eu não fui sorteado.

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