São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Viagem ao centro do labirinto

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Um mapa-múndi é uma coisa muito linda, cheia de sinais secretos. Quem de nós não gostaria de estar em todos os lugares e viver todas as vidas; quem não gostaria de conhecer tudo o que há no mundo e parar em cada lugar, saciado de tanto esforço e conhecimento? Mas não somos capazes sequer de percorrer o mapa inteiro, lendo o nome de cada lugar."
Extraídas de um conto do escritor checo Karel Capek (1890- 1938), estas palavras serviriam de impulso indireto a "O Milagre Secreto" de Borges, e apontam na direção de um tema que perpassa não só este conto, mas grande parte de sua obra. Modesta, ou obliquamente, elas definem o caráter daquilo que Maurice Blanchot já descreveu como o "espaço literário": uma geografia imaginária, cheia de sinais secretos, que vão nos guiando por um terreno impossível de visualizar.
Numa época em que o espaço vai se tomando o parâmetro predileto para as análises literárias, a obra de Borges cada vez mais se afirma como obra central do nosso tempo (ou talvez melhor: do nosso espaço). Mas a geografia borgiana não se deixa reproduzir com facilidade. Entre o infinito e o elementar, entre a multiplicação inumerável e a redução absoluta, as imagens espaciais de Borges se apresentam como elegantes, sedutores, insolucionáveis labirintos.
Seu gesto mais característico é o da consciência que quer se conter a si mesma, simultaneamente dentro e fora de si. A coincidência desses dois espaços, externo e interno, é uma ambição inalcançável, mas permanece como uma ilusão, em histórias cujo assunto secreto parece ser seu próprio estilo. Há muitas versões diversas do paradoxo da auto-inclusão em Borges; um dos mais frequentes é o da mente como representação do universo, ou de cada livro como enciclopédia total.
Labirintos e espelhos são outros emblemas da duplicidade, que é a marca, afinal, de toda literatura irônica, ou moderna.
O pensamento sobre pensamento é uma forma de vertigem, e tanto maior quanto maior é a consciência da sua inadequação. Em um de seus contos, Borges cita uma passagem de Josiah Royce, descrevendo um mapa perfeito da Inglaterra; o mapa tem a mesma extensão do país, o qual deverá cobrir.
Mas este também não será o mapa perfeito, porque agora um novo mapa deve incluí-lo e assim sucessivamente. (Outra versão do mesmo paradoxo é a comparação do "Quixote" de Cervantes com sua reprodução exata –e diferente– na obra do poeta fictício Pierre Menard.) O mapa absoluto é uma imagem ideal da representação, que a literatura desmente a cada palavra escrita.
Para autores tão fortemente irônicos, cada coisa é menos ela mesma do que uma menção de si, e a coincidência entre a literatura e o mundo real só pode ser uma idéia religiosa, ou expressão de fadiga.
O plágio, aliás, como a personificação, a espionagem, a duplicidade, ou a traição, é um dos motivos repetidos que movem a prosa de Borges. Nessas narrativas, o espaço literário exibe a imagem, logicamente absurda, de uma absorção integral da consciência por si mesma, ou da literatura no ato de escrever, ou da tradição na obra de seu sucessor.
Assim como os planos cruzados dessa geometria fantástica, também os tempos se cruzam numa lógica própria. Incorporador voraz da tradição, o poeta vai se descobrir como vítima, num movimento semelhante ao do primeiro detetive, Édipo, ou de seus avatares no conto policial.
"Toda e qualquer coisa fica feliz de se ver observada por outras coisas, mas só quando convencida de que não significam nada além de si." Assim reflete o Palomar de Italo Calvino –Calvino que é o maior, quem sabe, de todos os aprendizes de Borges, um artesão das ilusões, incluindo a da originalidade. Talvez por isto mesmo seu melhor livro seja aquele que concentra, num símbolo multiplicado, a imagem geográfica de ambivalências e nostalgias de Borges e seus precursores.
Veneza sempre foi uma capital da imaginação, a cidade de Byron, Proust, ou Thomas Mann. Mas é nas "Cidades Invisíveis" de Calvino que ela recebe sua mais exclusiva elegia, em meia centena de retratos. "Toda vez que falo de uma cidade, estou falando de Veneza", diz Marco Polo, no livro.
Enevoada, ambígua, dividida entre terra e água, essa Veneza, jamais descrita e sempre descrita, vai se figurando em breves imagens, que mais parecem uma repetição da ausência, perpetuamente deslocada. Calvino, como seu mestre, escapa sempre do momento de puro encontro; e no entanto seu tema é sempre o do conhecimento, ou reconhecimento de si. Seu tema, de fato, é a morte, única área da consciência que não se pode humanizar. Essa geografia das cidades vai, assim, pouco a pouco, deixando entrever outra paisagem.
Cabe ao próprio Borges (em "La Suma") nomear, afinal, numa dicção controladamente literária, o ponto de fuga dessas geografias invisíveis. Sentado frente a uma parede infinita, um homem resolve traçar "o mundo inteiro: portas, balanças, anjos, bibliotecas, labirintos... No momento preciso da morte, descobre que essa vasta confusão de linhas é a imagem de sua cara." Quem não quer riscar nesse muro, quem não quer viver essa vida? E quem não quer ler este mapa –ou o que está por trás?

Texto Anterior: Aparelho põe coordenadas dentro do bolso
Próximo Texto: Guia para o distante país do sonho
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.