São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Ainda à espera do real

ADROALDO MOURA DA SILVA

O real está chegando cercado de esperança de que desta vez a inflação será debelada. Aprendemos, após décadas de irresponsabilidade fiscal e monetária, que o governo não pode mais deter o poder discricionário de emitir, expandir ou contrair o estoque de base monetária. A forma mais simples de se estabelecer esse compromisso com a estabilidade é criar uma moeda lastreada em reservas internacionais, por força de lei.
Note, contudo, que a criação desta nova moeda lastreada não é condição suficiente para a estabilidade, é somente a condição necessária para que se possa implementar as reformas fiscal e patrimonial, de modo a construir o fundamento último da estabilidade econômica: a responsabilidade fiscal de longo prazo.
Nesse novo regime para expandir ou contrair a base monetária –papel em poder do público mais reserva bancária ou ainda a obrigação líquida do órgão emissor– cumpre-se um rito muito simples: cresce quando e se os agentes econômicos venderem uma posição de moeda estrangeira ao órgão emissor a preço fixo; e reduz quando e se os agentes comprarem reservas do órgão emissor a preço fixo. Moeda deixa pois de ser instrumento de política econômica, enquanto durar o novo regime.
Mas o governo não ficará inerte: pode alocar recursos tributários para cumprir suas promessas de crédito seletivo e subsidiado; pode e deve manter seu poder regulador e fiscalizador sobre as atividades bancárias; e logo aprenderá quanto custa manter uma instituição financeira pública.
O bom funcionamento desse regime depende de dois mecanismos básicos: o de juros e o de preços e salários. Juros reais altos ou em alta, relativamente aos do resto do mundo, atraem fundos de fora e ampliam pois a base monetária e, deste modo, reduzem a escassez de reais e derrubam os juros internos; "mutatis mutandis", juros baixos em real reduzem a base e ampliam a escassez relativa de reais, revertendo e aumentando assim os juros internos.
Mudanças no câmbio real, com câmbio nominal fixo, exigem movimento para cima e para baixo de preços e salários... Aí reside claramente um problema, graças à inflexibilidade para baixo de salários, nominal e real.
Operariam bem esses mecanismos no Brasil? Hoje, o país desfruta de uma intensa movimentação de fundos externos, atraídos ou "expulsos" em função da taxa de juros. O novo e revolucionário nisso tudo, contudo, é o fato de que parcela expressiva desses fundos está sob comando de residentes no país.
Funciona pois muito bem o mecanismo de juros. Poderia inclusive funcionar muito melhor se, por exemplo, fosse eliminado o imposto que hoje incide sobre ingresso de fundos externos, particularmente para aplicações de renda fixa. Nada mais seria necessário, nem mesmo ampliar os canais de conversibilidade.
Há, contudo, apreensões com a rigidez da taxa de câmbio nominal. Essa rigidez terminará por produzir valorização do real por conta de uma inflação residual inevitável e, assim, levantar temores recessivos.
Esta, contudo, deve ser uma situação temporária e administrável. Primeiro, porque recursos hoje alocados na administração da "inflação" serão reaproveitados de forma mais eficaz e, assim, aumentarão a produtividade física, reduzindo pois o custo unitário da mão-de-obra.
Segundo, com a inflação cairá também a incidência de tributos, do tipo do IPMF, que hoje oneram particularmente as exportações; poder-se-ia ademais reduzir o ICMS sobre as exportações e obrigar os Tesouros Estaduais a honrar os créditos de ICMS acumulados pelos exportadores.
Terceiro, não há porque temer uma redução do saldo da balança comercial, se o volume total das exportações também crescer. Hoje, o país exibe um saldo superior a 2,5% do PIB, típico de país rico. É básico compreender que estaremos colhendo os benefícios da recuperação da economia mundial nos próximos anos através da recuperação do preço real de um sem-número de produtos exportados pelo Brasil.
Não há como evitar os riscos da valorização da taxa de câmbio. Se preciso for, pode-se flexibilizar o regime em situações de crise, a começar pela definição de uma banda, digamos, de 2,5% para cada lado, na qual a taxa de câmbio poderia livremente flutuar após os 12 primeiros meses de sucesso do programa; de 5% para cada lado daí até 24 meses, e assim sucessivamente.
De qualquer modo, no início do programa o desafio será expandir e não contrair o estoque de base monetária. Aí porque é básico entender o mecanismo de juros, como propulsor e criador da nova base monetária. Sucesso ou fracasso do primeiro instante será aí definido.
Em suma, a inflexibilidade temporária requerida pelo programa de moeda lastreada gera problemas administráveis, mas bem menos agudos que os hoje produzidos pela inflação aloprada.
Contudo, essa inflexibilidade temporária é condição "sine qua non" para dar credibilidade ao compromisso do governo com a estabilidade de preços e com as reformas fiscal e patrimonial.
Por isso, a definição das regras de emissão da nova moeda, tanto quanto a fixação da taxa de câmbio, devem ser objeto de lei. Deixar o gatilho do câmbio ou as regras de lastro no poder do órgão emissor será um escárnio político.
É preciso exorcizar alguns fantasmas que rondam o debate da moeda lastreada. Primeiro, há os que não acreditam que haja disponibilidade de recursos externos para lastrear o real. Temor infundado. Só a base monetária precisa ser lastreada, e esta não é hoje superior a US$ 4 bilhões.
É certo que a estabilidade aumentará dramaticamente este valor. Mais certo ainda será o funcionamento do mecanismo de juro real para produzir exatamente o montante demandado de base monetária sem percalços inflacionários.
Segundo, afirma-se que, sem política monetária, será difícil governar. Erro crasso. O saldo de décadas de desmandos monetários e fiscais é exatamente produto do poder discricionário do governo central no manuseio da chamada política monetária. Só criou mais inflação...
Com o real, não se elimina a política de crédito; simplesmente ficará claro que qualquer política de crédito exige sacrifício de recursos reais adequadamente provisionados no Orçamento.
Terceiro, há ainda quem tema que a fixação do lastro escravizará econômica e politicamente a economia brasileira ao resto do mundo. Temor infundado. É óbvio que o lastro é reversível unilateralmente... Podemos mudá-lo ou abandoná-lo sem qualquer consulta à sede do Império.
Décadas de inflação já produziram a mazela temida: o brasileiro detém poupança lá fora, retém dólar na forma de papel moeda aqui dentro e foge da moeda nacional como o diabo da cruz...
Com moeda lastreada, essa dependência se reduz e até pode se anular, pois atrairá para dentro do país ativos hoje retidos lá fora por residentes no Brasil e "expulsará" do país a mais deletéria forma de exploração imperialista: a retenção de dólares na forma de papel-moeda.
O impacto inicial da introdução da nova moeda ocorrerá no mercado monetário. De pronto cai a taxa esperada de inflação e sobe dramaticamente a taxa de juro real. Mas isso será de uma curta duração. Ocorrerá entrada de fundos externos acompanhada de expansão do estoque de base monetária e de queda de juros em poucas semanas.
Para tanto, basta zerar o IOF que hoje dificulta a entrada de fundos externos. Quem comandará esse movimento é a demanda pelo estoque real da nova moeda, que cresce face a queda no custo de reter moeda, dado pela taxa esperada de inflação: não tema pois essa emissão inicial expressiva... será retida voluntariamente.
Superada a tensão inicial, deverá ocorrer expansão dos setores voltados para a produção de bens de salários por força do aumento da taxa de salário real e da apreciação da taxa real de câmbio. De um modo geral, os bens e serviços domésticos deverão obter impulso na segunda fase do programa, se a primeira fase for administrada com sucesso.
O maior risco de fracasso desta fase reside na tentação eleitoral de transformar os donos de supermercados em produtores de inflação e daí logo saltar para o congelamento de preços e salários.
A despeito da demagogia pré-eleitoral, a clara compreensão, em amplos círculos, de que só o governo pode produzir inflação aloprada é hoje a vacina contra essa tentação alimentada no obscurantismo político.
Por fim, o ciclo político virtuoso gerado pela estabilização só se solidificará nas instituições e operação do setor público se ele for utilizado para radicalizar as reformas do Estado brasileiro: privatizar; reduzir a sanha regulamentadora e intervencionista do Estado; reconstruir o sistema tributário; redefinir as regras de dispêndio dos recursos públicos; e respeitar o rito democrático de transformar em lei e implementar as regras e alocações orçamentárias.
Aí, então, tarefa a ser cumprida pelo novo presidente, teremos estabelecido o lastro político e administrativo para regular discricionariamente um novo regime monetário fiduciário. O lastro em moeda estrangeira será então redundante e dispensável.

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