São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Futebol, cultura e desenvolvimento

ANTONIO KANDIR

O Brasil todo calçar chuteiras em época de Copa do Mundo é visto por uns alguns, aqui e lá fora, como manifestação de atraso, de desapego à ética do trabalho.
Como pode um país, com tamanhos problemas a resolver, ficar imantado em frente à TV, contorcendo-se de aflição e vibrando de alegria pela seleção de futebol?
Tal atitude coletiva não corresponderia às exigências de um país que precisa recobrar o desenvolvimento para superar a miséria.
Nada mais cego à importância da cultura para o desenvolvimento econômico. O incômodo que sempre me causou essa visão dogmática tornou-se reflexão a partir de leituras recentes sobre os processos de desagregação dos Estados nacionais e suas implicações para o desenvolvimento econômico.
Dentre elas, a do livro "Paradoxo Global", de John Naisbitt. Em síntese, Naisbitt defende a tese de que, ao mesmo tempo que assistimos à globalização econômica, com a integração dos mercados domésticos em um único mercado mundial, defrontamo-nos, no plano da cultura, com processos de retorno a identidades tradicionais, determinadas pela unidade linguística, étnica, religiosa, etc.
Haveria, assim, simultaneamente à globalização, forte tendência à fragmentação de agrupamentos humanos em coletividades cada vez mais excludentes. Naisbitt fala em "tribalização", em um mundo de mil países, em poucos anos.
Leve-se ou não a sério a previsão numérica, a tendência à fragmentação de antigos Estados nacionais e à formação de coletividades altamente excludentes é inquestionável. Tome-se como exemplo a antiga Iugoslávia, a Liga Lombarda na Itália ou os movimentos de extrema-direita em toda Europa e na ex-União Soviética.
Ora, essa tendência cria obstáculos tremendos à lógica da produção num mundo globalizado. De um lado, porque o funcionamento dos mercados assenta-se na confiança mútua expressa em regras formais e informais, condição pouco compatível com relações virtualmente beligerantes.
De outro, porque, mesmo sem beligerância, a fragmentação excessiva cria terríveis problemas de coordenação.
Nesse panorama, contar com uma cultura nacional vigorosa e enraizada é um trunfo. O bom funcionamento do mercado requer lastro cultural adequado. Este lastro tende a ser fator cada vez mais importante para a geração/atração de investimentos e, portanto, para o desenvolvimento econômico.
Tudo o mais constante, países ou espaços econômicos com menor tendência à fragmentação e à tribalização tendem a ser favorecidos com mais investimentos.
Não é difícil entender por quê.
Imaginem os custos e dificuldades para realizar um empreendimento onde a mão-de-obra, do chão da fábrica à alta administração, esteja cindida por conflitos inconciliáveis de natureza étnica, religiosa etc.; um lugar em que, para usar o jargão, a livre circulação e emprego de fatores esbarre em obstáculos como esses.
Das poucas vantagens que carregamos do passado, a cultura diversa, porém nacional, é a maior. Vantagem que hoje tem importância maior do que teve em etapas anteriores de nosso desenvolvimento, quando o mundo estava solidamente estruturado em mercados domésticos definidos pelas fronteiras de Estados nacionais.
O futebol é certamente uma das expressões mais vigorosas dessa cultura nacional. Expressão genuína, visto que corresponde à experiência vivida de milhões de brasileiros, do garoto pobre da Vila da Penha (grande Romário!) ao menino bem-nascido da zona sul.
A seleção encarna, simbolicamente, essa experiência coletiva de vida. Encarna, sim, a unidade nacional, mas sem traços militarescos e autoritários.
Que o mundo todo saiba que, no Brasil, a unidade nacional não é frágil imposição política, mas expressão de uma experiência histórica, no plano da cultura, que explode com toda a intensidade quando o "11 canarinho" adentra as quatro linhas do gramado.

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