São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Místico faz de tudo um sacramento

PAULO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

O texto é de Leonardo Boff:
"Captar Deus é tê-lo em todas as dimensões da vida, não apenas em situações privilegiadas, como quando se comunga ou se reza. Ter a experiência de Deus sempre –andando na rua, respirando o ar poluído, alegrando-se, tomando cerveja, procurando entender um texto que se esteja estudando. Deus vem misturado com tudo isto; e qualquer situação é suficientemente boa para captá-Lo e dizer: "Ele anda conosco".
"A chave do místico é procurar ver o que está por trás de cada coisa, o que a constitui e sustenta. Não ficar preso ao superficial, –mas fazer de tudo um símbolo, um sinal, um sacramento, uma imagem".
"Para quem tem a experiência de Deus, o mundo é uma grande mensagem".

sexta - 24.junho
O guerreiro da luz sempre mantém o seu coração limpo do sentimento do ódio. Quando caminha para a luta diária, lembra-se de que Cristo disse: "amai vossos inimigos". E o guerreiro obedece.
Entretanto, o guerreiro sabe que o ato de perdoar não o obriga a aceitar tudo. Um guerreiro nunca abaixa a cabeça –ele precisa olhar para a frente, e não perder de vista seus sonhos.
O guerreiro vê os adversários. Estão ali para testar sua bravura, sua persistência, sua capacidade de tomar decisões. São ferramentas que Deus colocou para ajudá-lo a ser claro em seus propósitos.
O guerreiro sabe que seus adversários são uma bênção –porque eles que o obrigam a lutar por seus sonhos. E os enfrenta.
E a experiência do combate é que fortalece o guerreiro da luz.

sábado - 25.junho
Mario largou tudo para realizar seu sonho: abrir uma livraria –a "Excalibur"– em Buenos Aires.
Passaram-se três meses. Certa noite, sozinho na livraria, blasfemou contra si mesmo. Estava afundado em dívidas, e os cobradores ameaçavam pedir sua falência. Lembrou-se de um filme, "Windy City", onde um ator gordo tem uma fé tão grande que consegue superar todos os obstáculos. "Não sou como aquele personagem; não vou conseguir vencer este momento", pensou.
Virou-se para apagar a luz, quando alguém entrou. "Está fechada", disse, virando-se para o cliente. Levou um susto: folheando alguns livros estava J. Mostal, o tal ator gordo do "Windy City", que visitava a Argentina –e no qual pensara minutos antes.
Desnecessário dizer que Mario compreendeu o sinal, superou os obstáculos, e a Livraria Excalibur hoje é um sucesso.

segunda - 27.junho
Um famoso mestre sufi foi convidado para dar um curso na Califórnia. O auditório estava repleto às 8 da manhã –hora marcada para começar– quando um dos assistentes subiu ao palco. "O mestre está acordando agora. Tenham paciência".
O tempo foi passando, e as pessoas abandonando a sala. Ao meio-dia, o assistente voltou ao palco, dizendo que o mestre daria a palestra assim que terminasse de conversar com uma bela menina que encontrara. Grande parte da platéia saiu.
As quatro da tarde, o mestre surgiu –aparentemente alcoolizado. Desta vez, quase todos saíram; ficaram apenas seis pessoas.
"Para vocês eu ensinarei", disse o mestre, parando de representar o papel de bêbado. "Quem deseja percorrer um caminho longo, tem que aprender que a primeira lição é superar as decepções do início".

terça - 28.junho
Existe um lixo emocional: ele é produzido nas usinas de nosso pensamento, enquanto crescemos interiormente. São emoções que passaram por nossa vida e nos ajudaram –mas que não tem mais qualquer utilidade. São sentimentos que foram importantes no passado, –não no presente. São recordações de dor que nos amadureceram– e que agora não servem para nada.
Não podemos carregar este lixo: ele foi feito para ser jogado fora.
E no entanto, apegados aos nossos sentimentos antigos, ficamos com pena de deixá-los. Enchemos nosso porão espiritual com uma confusão de memórias inúteis,que ofuscam as nossas lembranças importantes.
Não procure sentir coisas que você não está sentindo mais. Não procure ser como você era. Você está mudando –permita que seus sentimentos lhe acompanhem,.

quarta - 29 junho
Assim que morreu, Juan encontrou-se num belíssimo lugar, rodeado pelo conforto e beleza que sonhava. Um sujeito vestido de branco aproximou-se: "você tem direito ao que quiser: qualquer alimento, prazer, diversão", disse.
Encantado, Juan fez tudo que sonhou fazer durante a vida. Depois de muitos anos de prazeres, procurou o sujeito de branco:
"Já experimentei o que tinha vontade", disse. "Preciso agora de um trabalho, para me sentir útil".
"Sinto muito", disse o sujeito de branco, "mas esta é a única coisa que não posso conseguir. Aqui não há trabalho".
"Que terrível", disse Juan. "Passar a eternidade morrendo de tédio. Preferia mil vezes estar no inferno".
O homem de branco aproximou-se, e disse em voz baixa:
"E onde o senhor pensa que está?"

quinta -30.junho
Frei Betto, ao comentar os desafios da oração, sugere que –para disciplinar a mente durante a prece– devemos limpá-la de todas as imagens. Como é muito difícil lutar contra os pensamentos, precisamos tratá-los como nuvens: eles chegam e partem, cruzando a nossa imaginação, como as nuvens cruzam o céu azul.
E nos lembra de um método de concentração muito utilizado no Oriente: cuidar dos pequenos detalhes. Um zen-budista utiliza uma tarefa comum –como beber água, por exemplo– para aproximar-se de Deus. Pega o copo, coloca a água, percebe sua beleza e sua doçura –enquanto a bebe. Sem ansiedade com o tempo, consegue fazer de cada gesto um rito de aproximação da Divindade.
"Devemos falar com Deus o tempo suficiente para poder escutá-Lo", diz frei Betto.

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