São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Bactéria pode ter 'pintado' sangue milagroso de Cristo

DA "NEW SCIENTIST"

Um dos mais conhecidos milagres da Igreja católica pode ter sido mais microbiano do que divino. Na Itália, no século 13, a hóstia usada numa missa apareceu manchada de sangue, no chamado "milagre de Bolsena". Mas hoje parece que o suposto "sangue" era provavelmente uma cultura da bactéria Serratia marcescens.
Em 1263 um padre da Boêmia que viajava até Roma parou para celebrar uma missa na vizinha Bolsena. Quando ele se curvou sobre a hóstia sacramental, começou a se perguntar se ela seria realmente o corpo de Cristo. De repente a hóstia parecia estar secretando sangue, chegando a manchar o altar e os dedos do padre.
O padre, convencido de que acabava de testemunhar um milagre, correu para contar o acontecido ao papa Urbano 4. Este comemorou o acontecimento, inaugurando o dia santo anual de Corpus Christi. Desde então a missa de Bolsena tem sido tema de muitas histórias e obras de arte, das quais a mais notável é um afresco de Rafael, no Vaticano.
Mas outros casos de "sangue" surgindo em alimentos têm sido reportados há muito tempo, começando pelo ano 332 a.C., quando os soldados de Alexandre o Grande encontraram sangue em seu pão, durante o cerco de Tiro. O sangue geralmente aparecia em pão, polenta, batatas ou outros alimentos contendo amido, em climas quentes. Os primeiros estudiosos deste fenômeno pensavam que o sangue era provavelmente provocado por fermentação ou por um fungo.
Agora Johanna Cullen, da Universidade George Mason em Fairfax, Virginia (EUA), conseguiu recriar as condições medievais numa placa de Petri, que contém meio favorável ao crescimento de culturas de bactérias.
Ela incubou hóstia com uma cultura de bactérias Serratia marcescens, que produzem um pigmento chamado prodigiosina, cuja cor varia entre o laranja vivo e vermelho forte. Três dias depois surgiram manchas vermelhas, cor de sangue, muito semelhantes às pintadas por artistas que retratam o milagre de Bolsena ("American Society of Microbiology News", volume 60, pág. 187).
O trabalho de Cullen reforça as especulações dos cientistas do século 19. Em 1819 apareceu "sangue" em polenta num armário em Legnaro, Itália, para espanto dos seus habitantes. O lavrador jogou fora a polenta, mas pouco depois encontrou mais sangue em polenta fresca, pão, frangos e qualquer outra coisa que guardasse no armário.
Chamado para investigar o fenômeno, o médico Vincenzo Sette concluiu que era causado por um fungo que vicejava na cozinha úmida e suja.
Mais ou menos na mesma época, mais independentemente de Sette, o farmacêutico Bartolomeo Bizio descobriu que a substância avermelhada de Legnaro continha "sementes", às quais deu o nome de S. marcescens.
O primeiro cientista a observar o organismo em si foi Christian Ehrenberg, um biólogo alemão que estudou manchas vermelhas encontradas numa batata cozida, em 1848.
Ehrenberg também identificou determinadas características do sangue que surgia: sua coloração era vermelha viva, aparecia primeiro sob a forma de manchas vermelhas que se espalhavam rapidamente, terminando por cobrir o alimento inteiro, pingava um líquido incolor e aparecia nos meses quentes do verão.
"A Serratia requer um clima específico para crescer", diz Cullen. Para reproduzir o fenômeno de Legnaro, ela também fez experiências com polenta quente, que tratou com a bactéria. Após apenas um dia a polenta estava parcialmente recoberta por uma camada de cor vermelha clara. Após dois dias, estava extensamente invadida pela cor vermelho-sangue.

Tradução de Clara Allain

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