São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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PENSAMENTO E PARTICIPAÇÃO; Engajamento mitigado

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

PENSAMENTO EPARTICIPAÇÃO

Engajamento mitigado
A imagem do intelectual refugiado na sua torre de marfim está gasta, hoje não passa duma caricatura. Sabe-se que a Ciência não é neutra, que hoje em dia os intelectuais trabalham metidos em instituições muito caras, as pesquisas aumentam exponencialmente seus custos, enfim que a própria Ciência, ao se transformar em mola do desenvolvimento econômico, converte-se numa peça de xadrez a ser movida por capitais de vulto e hábeis políticos. Isto não impede, todavia, que, neste contexto altamente determinado, o indivíduo pesquisador goze de extrema liberdade, pois até mesmo o financiador mais minucioso em seus cálculos sabe que a aventura da invenção tem seus imprevistos, uma programação rígida transformando o pensador em burocrata.
Como o pesquisador individual pode e deve explorar os graus de liberdade que lhe restam? Se desde logo está situado, de um lado, no contexto duma política científica e institucional; de outro, sob a influência de certo tipo de demanda social (em algumas ciências de ponta, por exemplo, o trabalho cotidiano está sempre de olho no prêmio Nobel); não há como evitar que se associe tanto aos companheiros mais próximos, quanto dispute para obter recursos nos mais variados campos e das mais variadas espécies. Faz política até mesmo quando se isola dela ou passa a visar tão-só e unicamente assenhorar-se de uma posição burocrática, graças ao mínimo de produção possível. Porquanto nas condições atuais em que o engajamento político, no sentido lato, dos pesquisadores os lança numa competitividade desvairada, para muitos grupos, que sabem estar fora das gratificações dadas pelo mérito, o melhor é fechar o pacto com os medíocres a fim de assegurar sombra e água fresca.
Há, porém, um traço na política contemporânea profundamente antiintelectual: se se faz muito mais por imagem do que por conceito; de sorte que o intelectual que mergulha na política tende a negar sua própria condição de analista e fabricante de conceitos. Que existe uma diferença entre o saber dos filósofos e dos cientistas em geral, de um lado, e aquele dos políticos, de outro, desde dos gregos o pensamento ocidental não se cansa de analisá-la. Mas não me parece residir aí a novidade. Agora, a prudência dos políticos se desenvolve muito menos segundo regras retóricas, e muito mais por uma forma de persuasão que passa pela imagem do próprio político. Isto é evidente na política partidária, mas, com menor nitidez, também se percebe em qualquer outro domínio. Atentemos para a política científica: o líder quase sempre não é o intelectual de maior prestígio em sua especialidade, mas aquele que possui um passado de intervenções pertinentes.
Acontece, porém, que se for propriamente um pesquisador fica entalado numa contradição: se pretende manter-se fiel à sua vocação de intelectual, comprometida com a análise de conceitos, não pode compactuar com a política que lhe é requerida já ao nível de sua profissão, pois esta implica que vista seus conceitos, pelos os quais a pensa, com a roupagem da cena pública. Nada melhor para compreender este ponto do que assistir a uma assembléia de cientistas reivindicando políticas e vantagens.
Respeitáveis pesquisadores, do mais alto gabarito, vão na onda daquele que apresenta as reivindicações de forma mais bombástica, mesmo quando são irrealistas no plano do orçamento geral da nação, ou do esperto que comove contando suas mazelas durante suas pesquisas e assim por diante. O tom geral, porém, é sempre reivindicativo por mais e mais recursos, como se não estivesse podre toda a estrutura da pesquisa brasileira, dos órgãos de financiamento às políticas das menores unidades de investigação. Uma assembléia de pesquisadores é o pior lugar para se conhecer como eles pensam do ponto de vista da ciência. É antiga a comparação do político com o pastor de homens, mas na idade da mídia e da manipulação da imagem, mais vale compará-lo ao comunicador e ao âncora de um programa de notícias. E não deixa de ser triste que ao cientista também se peça que, para existir como pesquisador, igualmente aceite representar tais papéis. No final das contas, é mais conhecida a cara de Einstein de língua de fora do que suas equações.
Espero não ser mal compreendido: não estou denunciando ninguém, nem me imaginando fora desse carnaval; pretendo apenas sublinhar que estamos todos nele, embora, por certo, existam os mais empenhados e os mais prudentes. E a contradição é inevitável, não há remédio senão conviver com ela. Como, eis a questão.
Percebe-se quanto é difícil nessas condições o intelectual se pôr a serviço de um único partido político. Ao assumir compromissos com uma linha de ação que persuade sobretudo por imagem, desiste publicamente daquela liberdade de variar amplamente os casos, justamente aquele procedimento que lhe permite passar da imagem para o conceito.
Não estou dizendo que deixou de pensar, mas que pensa de um ponto de vista que, embora coletivo, ele próprio participando desse processo de coletivização, abandona a distância que lhe permite exercer de público uma crítica que comprometa a imagem que venha implementar a decisão tomada. Seu pensamento se subordina a uma estratégia que não é científica mas propriamente política. E isto somente poderia pretender adquirir sentido científico, quando se acreditava que um partido trazia em sua particularidade a universalidade da história, assim como a substituição da própria política pela engenharia científica do social.
Em poucas palavras, pressupondo um contexto democrático, mais lhe vale ser um cientista que pensa a política encenando politicamente seu pensamento, do que obstinadamente terçar armas em defesa de seu partido. Mas como não pode simplesmente se pôr como observador, já que esta posição implica uma política, mais lhe convém exercer uma participação cautelosa e mitigada, sempre deixando um espaço aberto para se colocar em perspectivas diferentes.

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