São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O RELATIVISMO COMO CONTRAPONTO

BENTO PRADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Talvez possamos dizer que o combate ao relativismo atravessa toda a história da filosofia. Pelo menos em dois momentos cruciais dessa história esse combate é essencial. Penso no século 4 a.C. (com a formação da filosofia grega clássica) e na viragem do século 19 ao 20 (com diversas tentativas de devolver à filosofia seu "fundamentum absolutum"). Nos dois casos, a filosofia parece atribuir-se a mesma tarefa crítica e positiva: desmontar o relativismo que põe em cheque a universidade do conhecimento racional, para tornar possível a instituição da filosofia como "strenge Wissenschaft".
Na série Sócrates-Platão-Aristóteles é o contraponto ao relativismo epistemológico (e o "nihilismo" ontológico a ele associado –pensemos em Górgias), tal como exposto pela sofística, que leva da teoria do conceito e da distinção entre retórica e dialética até à instituição da analítica ou da lógica. Com Aristóteles, a logologia aparentemente suicida da sofística é substituída por uma articulação entre lógica e ontologia que garante ao mesmo tempo necessidade e universalidade do conhecimento racional, de um lado, e autonomia do objeto do conhecimento (do Ser) ou realismo, de outro lado. Universalismo (ou absolutismo) se opõe ao relativismo, assim como objetivismo a subjetivismo.
Mas essa grande ambição fundacionista não haveria de resistir ao longo de nosso século. De fato, em todas as tendências da filosofia européia, filosofia analítica, fenomenologia (e é preciso acrescentar aqui o neokantismo), ou seja Russell, Husserl e a Escola de Marburgo, cada um à sua maneira, e reportando-se diferencialmente à tradição do racionalismo (Platão, Descartes, Leibniz e Kant) identificam a Razão ao Absoluto, projetando para a noite da Irrazão ou do não-sentido o domínio do empírico, do natural, do psicológico e do histórico.
E, no entanto, em cada uma dessas tradições, um movimento parece esboçar-se na década de 20, que leva a um alargamento da idéia de razão, acompanhada de uma atenção crescente pelas formas pré-epistêmicas ou pré-predicativas da consciência ou pelas raízes pré-lógicas do conhecimento e da linguagem. Algo como a busca de um logos estético (para empregar a expressão de Merleau-Ponty), ou a exploração do "Lebenswelt" de Heidegger ou ainda a fenomenologia da expressão de E. Cassirer. Ou algo como a busca de um logos prático (para empregar a expressão de J. A. Gianotti) implícito nas noções de "Sprachspiel" e }Lebensform do segundo Wittgenstein.
Com esse movimento é o fundacionismo e o seu absolutismo que entra em eclipse: Heidegger reitera o trocadilho hegeliano: "Zu Grund gehen" (ir em busca do fundamento) é equivalente a cair no "Abgrund", abismar-se no sem fundo; Wittgenstein afirma que quando atingimos o "rock bottom" ("la pierre et l'argile" sólidas, sobre as quais Descartes queria erigir o edifício da ciência), só atingimos o pântano fluido de convenções perfeitamente contingentes (ou descobrimos que é o edifício que sustenta seu alicerce); Cassirer transforma sua teoria da ciência numa filosofia da cultura ou das formas simbólicas, que compreende, num só ato de reflexão, mito, arte e ciência. Ao que poderíamos acrescentar os efeitos relativizadores da reflexão sobre a história da ciência (as famosas "revoluções científicas" e a distinção entre "ciência normal" e "ciência revolucionária").
Ao que parece, portanto, a batalha do absolutismo não se encerrou e o relativismo parece permanecer vivo e à espreita da menor brecha na armadura do fundacionalismo. Talvez seja nesse sentido que Ernst Gellner afirma que o relativismo é um "espectro que assombra o pensamento humano".
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Como explicar esta imortalidade do relativismo, se ele é o que dele dizem os manuais? Não é verdade que o relativismo (como o ceticismo) é uma teoria suicida? Ao afirmar que a verdade de toda teoria é relativa ao sujeito (individual ou coletivo) que a enuncia, o relativismo não arruína sua própria pretensão de verdade, alinhando-se com as teorias que relativiza?
Essa refutação, como observa Rorty, é demasiado fácil. Ou seria fácil, caso houvesse relativistas nesse sentido, i.e., quem afirmasse que "qualquer crença sobre certo assunto é tão boa como qualquer outra" (1). Se ninguém é relativista nesse sentido, para que possamos determinar um sentido positivo mínimo para o relativismo (como atitude filosófica possível ou sustentável), é preciso que fixemos nosso olhar em alguém historicamente dado –e certamente o melhor candidato é o próprio Protágoras, o herói fundador da tradição do relativismo.
Não se trata para nós de fazer filologia ou história da filosofia (o que está fora de nosso alcance), mas de recorrer aos historiadores da filosofia, para verificar a possível consistência de uma filosofia relativista. Mais precisamente, recorrer a dois livros (2) para tentar apreender o sentido do relativismo protagórico.
A proposição de Protágoras enuncia: "O homem é a medida de todas as coisas –das que são enquanto são: das que não são enquanto não são". Noutras palavras, se algo aparece para mim como tal ou qual, será tal ou qual. Se o vento parece frio para mim, que estou com febre, será frio, mesmo se parecer quente para você, caso em que será quente (2). Proposição escandalosa –que recebe refutação idêntica de Demócrito e de Platão. O pecado da proposição é que ela envolve uma "peritropê" (literalmente, revolução dos astros, aqui, o movimento da proposição que se volta sobre si mesma e se anula). Sextus Empiricus resume o argumento:
"Ninguém pode dizer que toda `phantasia' é verdadeira, por causa da `peritropê', como Demócrito e Platão nos ensinaram em seu ataque a Protágoras; pois se toda `phantasia' é verdadeira, mesmo a proposição segundo a qual nem toda `phantasia' é verdadeira, sendo ela própria objeto de `phantasia', será verdadeira, donde resulta falso que toda `phantasia' é verdadeira" (4)
O interesse da análise que Barnes faz da proposição de Protágoras reside em sua tentativa de subtrair –usando os recursos da moderna análise lógica– aquela proposição ao alcance do argumento democriteano-platônico, liberando-o da aparência de "peritropê". Sua tese é que a proposição não apenas não é autodestrutiva, mas que ela abre campo para "uma epistemologia sistemática e sofisticada, e que representa em parte uma contribuição para a filosofia, original e não desinteressante".
Uma via fácil para absolver a proposição da acusação de contradição, seria insistir na dimensão "fenomenológica" ou pré-predicativa do "phaínestai" (parece, digamos, aos meus olhos), por oposição da "dokei" (parece, no sentido de "estou inclinado a julgar que ..."). Mas esse caminho é descartado por Barnes que quer conservar o sentido judicativo da proposição de Protágoras. E é assim que Barnes reformula a proposição nos seguintes termos:
"Para qualquer homem, `x', e objeto, `O', se `x' julga que `O' é `F', então `O' é `F', e se `x' julga que `O' não é `F', então `O' não é `F' ".
Uma vez assim fixado o sentido da proposição, Barnes faz intervir a teoria protagórica segundo a qual, a propósito de cada tópico, existem dois argumentos opostos e de que esses argumentos são equipolentes. Se os dois argumentos têm força desigual, a arte do sofista consiste justamente em tornar mais forte o argumento mais fraco. Ou seja: "Para qualquer objeto `O' e o predicado aparentemente objetivo `F', qualquer razão para julgar quer `O' é `F' pode ser contrabalançada por uma razão igualmente forte para julgar que `O' não é `F' ".
(continua)

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