São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O RELATIVISMO COMO CONTRAPONTO

BENTO PRADO JR.

(continuação)
Não se trata de contrariar o princípio de contradição, mas, talvez, de sugerir que a simples lógica não é suficiente para dirimir as "quaestiones disputatae". E "dizer que a contradição é impossível não é afirmar que a proposição e sua contraditória podem ambas ser verdadeiras ao mesmo tempo: é asseverar a tese muito distinta de que você não pode me contradizer" (5). Assim traduzida, a proposição perde algo de seu aspecto escandaloso. Basta pensarmos na famosa "indestrutibilidade" das filosofias, sobre a qual tanto insistia a historiografia francesa "estrutural" da filosofia (Guérroult e Goldschmidt). Afirmar que as filosofias são "mônadas" ou fortalezas argumentativamente invulneráveis, é dizer que a lógica não é instrumento que nos permita falsificar alguma delas em proveito de uma filosofia privilegiada.
É essa, pelo menos, a consequência que Oswaldo Porchat retira de sua reflexão sobre o "Conflito das Filosofias" (6). É bem a Apologia de Protágoras, incluída no "Teeteto" de Platão, que serve de ponto de partida para a sua reflexão metafilosófica ou para a sua filosofia da história da filosofia. De um lado, a decisão de estudar as filosofias de maneira não dogmática (isto é, de interpretá-las "ad mentem auctoris") respeitando a ordem instauradora de suas razões, de outro lado, o reconhecimento realista do fato da "diaphonia". O reconhecimento de que "os diferentes discursos filosóficos constroem-se segundo diferentes `lógicas' que, em se constituindo, vão também instaurando; e assim as teses que engendram se tornam indissoluvelmente solidárias dos métodos que as produzem e fundamentam" (7). Poderíamos traduzir: "Para qualquer filósofo `x' (se interpretado `ad mentem auctoris'), e o Objeto `O' (o mundo na sua totalidade), se `x' julga que `O' é `F', então `O' é `F'; se julga que `O' não é `F', então `O' não é `F' ".
Para esta metafilosofia (que dificilmente pode ser considerada irracionalista, tanto insiste na construção lógico-argumentativa das teorias), parece haver, como na Sofística, privilégio da idéia de produção ("poíesis") sobre a de descoberta ("alethéia") da verdade. Estamos tão longe assim de Protágoras? Com Oswaldo Porchat, creio que não. Quem poderia, por exemplo, derrubar positivamente as muralhas do solipsismo, já que não há ninguém, nem qualquer aríete fora delas?
A tese torna-se mais forte se, à equipolência dos argumentos pró e contra juntarmos a teoria da "relatividade" ou a teoria do caráter cripto-subjetivo das proposições. Assim, "é uma verdade elementar que nem todo par de sentenças da forma `O é F' e `O não é F' exprime proposições contraditórias". Um exemplo: "Os irmãos Marx são engraçados" e "Os irmãos Marx não são engraçados" podem ser consideradas equivalentes a "Os irmãos Marx me fazem rir" e "Os irmãos Marx não me fazem rir" (8). Proposições que obviamente não são contraditórias e que abrem campo para argumentos dos dois lados e à estratégia da persuasão.
Centrando a proposição do homem-medida dentro do triângulo definido pelas três teses da equipolência, da impossibilidade da contradição intersubjetiva e da cripto-subjetividade das proposições, estamos além do alcance da imputação de "peritropê". Protágoras poderia retorquir, contra Demócrito e Platão, que 1) a proposição do homem-medida não tem a forma "O é F", e sua negação não predica nada, 2) com a teoria da relatividade, muda o sentido de juízo verdadeiro; ele é verdadeiro para ..., 3) na conclusão do argumento Demócrito-Platão (A proposição é falsa), o predicado "... é falsa" é cripto-subjetivo e deve ser traduzido por "H é falsa para S". Numa palavra: não há contradição lógica entre duas "deŒxis".
Mas o que dá mais verossimilhança a esta nova Apologia de Protágoras, é que ela torna mais compreensível os efeitos ético-políticos da proposição do homem-medida. Sem essa mínima positividade (ou com a idéia de que a proposição nos faz mergulhar no não-sentido), seria difícil explicar o fato de que a Sofística assume, com seu primeiro herói, a primeira grande figura da "Aufklãrung". É certo que toda a filosofia pré-socrática é "aufgeklãrte" de estilo –e Xenófanes já fazia uma forma de relativismo funcionar como arma contra a tradição e a mitologia. Contra a tradição, Homero e Hesíodo, diz o "Aufklãrer":
"Os mortais crêem (...) que os Deuses têm um nascimento, e roupas, vozes e corpo iguais aos seus (frag. 14). E os etíopes representam os seus Deuses platirríneos e negros, e os trácios dizem que têm olhos azuis e os cabelos vermelhos (frag. 16). Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e com elas pudessem desenhar e realizar obras como os homens, os cavalos desenhariam figuras de Deuses semelhantes aos cavalos, e os bois aos bois, e formariam seus corpos à imitação do próprio" (frag. 15) (9).
Com Anaxágoras, a "Aufklãrung" destrói a tradição da mitologia através do relativismo teológico. Movimento de clarificação retomado por Protágoras, que decide pelo agnosticismo em matéria de religião –nada podemos dizer sobre os deuses, nem o que são, nem se são ou não são. O agnosticismo teológico, de Protágoras, acompanhado da negação da indiferença ético-política, parece confirmar a interpretação compreensiva de Barnes. Sem um mínimo de positividade na epistemologia de Protágoras (ou se toda opinião equivalesse à contrária, de maneira absoluta ou em todos os casos), não haveria como esvaziar a mitologia, uma opinião entre outras, e fixar critérios para a ética e para a política.
Há, portanto, opiniões melhores do que outras, mesmo se não são mais verdadeiras. Guthrie esclarece esta distinção explicando o sentido sofístico da "Sophia". O "sophós" (sábio) é quem transforma o que parece ou é mau no que parece ou é bom. O alimento parece amargo para o doente: e essa opinião, do doente, não é menos verdadeira do que a contrária, do homem são. Mas o médico, que é sábio e conhece as regras da arte de curar, pode (agindo, de maneira alternativa, sobre a situação), fazer com que o alimento pareça (e seja) doce e apetecível. Da mesma maneira, o educador, o político ou o sofista usam as palavras como o médico, os remédios. Não substitui o erro pela verdade ou ignorância pelo saber –leva o discípulo a uma situação melhor ou mais vantajosa, redescrevendo a situação em que ele se encontra. Quando o homem se encontra em estado de carência, dor ou aflição ("ponerôn"), ele o torna são de espírito dando-lhe pensamentos sãos ("chrestós"). Guthrie sublinha –como é oportuno– a continuidade do fio semântico tecido pela palavra "chrestós": útil, eficaz, salutar, higiênico...
É particularmente esclarecedora a aproximação entre sofística e medicina: a diversidade irredutível entre o são e o doente não é obstáculo a uma discriminação pragmática: é melhor a saúde do que a doença, a calma do que a aflição. E é essa discriminação que permite que, a despeito do relativismo epistemológico e antropológico, a sofística possa sugerir uma ética e uma política universalistas, para além do etnocentrismo que caracteriza tanto o pensamento tradicional como o pensamento clássico grego.
Neste sentido, a sofística parece antecipar o cosmopolitismo do pensamento helenístico e de sua versão latina. Como se Protágoras, estrangeiro que conheceu o exílio de Atenas, pudesse dizer, antecipando o exilado poeta latino: "Barbarus hic ego sum". De fato, para o estrangeiro e o exilado, o lugar externo revela a relatividade do espaço e da cultura, bem como a amplitude do Mundo. E, de fato, pertence à essência do relativismo essa técnica de "reconversão do olhar" (ou de distanciamento do olhar, como diria Lévi-Strauss) ou de "redescrição" que inverte os termos das oposições fixadas pela tradição.
Não é verdade, com efeito, que Sócrates considera necessário submeter-se à injusta lei da cidade, mesmo à custa de sua própria vida? O antitradicionalismo da sofística implica em marcar fortemente o hiato entre "nômimon" e "díkaion", lei positiva e lei moral: a convenção social não mais recebe o suporte absoluto dos Deuses ou da razão que, mesmo no descarrilhamento da lei positiva, era sacralizada pelo polis-centrismo de Sócrates e Platão. É claro que o reconhecimento do caráter local ou convencional da lei política, bem como a idéia do progresso das técnicas e das instituições humanas, não transformam Protágoras num "revolucionário". Mas talvez se possa dizer que ele se opõe, pela primeira vez, o policentrismo ao polis-centrismo.
(continua)

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