São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O RELATIVISMO COMO CONTRAPONTO

BENTO PRADO JR.

(continuação)
Progressismo reformista, talvez fosse essa a melhor etiqueta (com todo o anacronismo que implica) aplicável a Protágoras. As leis existentes têm substância racional, mesmo se, em sua positividade, contrariam a "díke". Mesmo no caso da injustiça do "nômos", o "nômos" sempre terá a vantagem de assegurar as forças centrípetas do corpo social. Numa palavra, toda transformação só será aceitável se a nova lei for aplicada por consentimento comum e processo constitucional. E é aqui que intervém a arte do }sophós ou do sofista: é a ele que cabe convencer a }polis de que é melhor (mais saudável ou proveitoso para o corpo político) mudar as leis que lhe asseguram a existência.
Não estamos querendo aqui atribuir a Protágoras o papel de inspirador de uma crítica revolucionária da razão, da sociedade e da cultura, como Sloterdijk faz com Diógenes. Decididamente, Protágoras não pode encarnar a aura, o }appeal ou o charme indiscreto da "contracultura", mesmo se é subversivo à sua maneira, no contraponto ao racionalismo grego clássico. Nosso propósito era apenas mostrar o aspecto positivo do relativismo, com a ajuda dos historiadores da filosofia, opondo-o à caricatura que dele encontramos na melhor tradição do racionalismo.
Mas e hoje? Recentemente, Paulo Arantes perguntava: – Que significa, hoje, ser pirrônico? Sloterdijk já perguntou: – Que significa ser cínico neste fim de século? Minha pergunta é a seguinte: – De que nos serve a referência à sofística antiga, no debate contemporâneo sobre o relativismo? É preciso cuidado, para evitar os anacronismos. J. Barnes sublinha justamente o anacronismo e a pouca utilidade de etiquetas como subjetivismo, idealismo, etc. Como Heidegger já protestava, no seu monumental }Nietzsche, contra a interpretação literalmente moderna ou "humanista" da proposição do homem-medida.
Mas não poderíamos falar de pragmatismo? Para quem não tem antipatia pela sofística e já foi exposto à sedução do pensamento e da escrita de William James, a idéia pode não parecer insensata. Penso, aqui num dos herdeiros (de William James, certamente, de Protágoras, talvez). Falo de Richard Rorty. Se pudermos mostrar a coincidência parcial, pelo menos, entre os pensamentos de Protágoras e de Rorty, teremos, pelo menos, mostrado alguma atualidade na velha sofística grega.
Tarefa que não parece difícil. Assim, por exemplo, já tivemos a oportunidade de apontar –através da discussão de um belo livro de inspiração rortyana (10), a cumplicidade entre o neopragmatismo e a "retórica" no sentido antigo do termo. No fundo, a conjunção entre algum realismo ou a necessária modéstia intelectual (a filosofia não demonstra nada de maneira absoluta), e uma inegável vontade ética (nas palavras de McCloskey, o imperativo }be honest, be fair, acoplado ao lema }rethoric is good for you!), redunda na decisão de que é necessário minimizar a retórica da verdade, incentivar uma mudança desta retórica ou incentivar a retórica da mudança. Se não há verdade absoluta, se uma proposição interessante não é exatamente uma }picture (ou um espelho, um mapa) de um estado de coisas, por que não valorizá-la, se ela pode mudar nossa visão das coisas, redescrevendo-as, e abrindo o espaço para uma nova forma de vida, talvez melhor porque mais democrática?
A arte da re-descrição é a arte essencial do sofista. Vejamos um exemplo da retórica judicial (deixando de lado a política e a epidíctica). Alguém é acusado de ter surrado alguém e tudo indica que isso ocorreu. Resta sempre a ordem do discurso e da verossimilhança. Sendo menor que o acusador, dirá: "Olhem-me; será possível que um homem como eu enfrente um homem tão grande e forte como ele?". No caso contrário, se for um gigante, dirá: "Seria eu tão estúpido para atacar alguém, quando seria a primeira pessoa sobre a qual pesariam as suspeitas?" Num caso como no outro, desprezando a dogmática verdade dos estados de coisa ou da coisa em si, o que importa é a consistência das versões, das descrições ou, sobretudo, das re-descrições, como abertura de novas formas possíveis de pensamento ou de ação.
E é justamente a idéia de re-descrição que serve de instrumento fundamental para Rorty em sua batalha contra as ilusões da metafísica e em prol da restauração do belo pragmatismo norte-americano, infelizmente eclipsado pelo surto de filosofia técnica, universitário-profissional, que prosperou nos EUA, graças aos professores imigrados da Europa (confessemos que é difícil discordar do diagnóstico rortyano).
Se a própria filosofia analítica, de maneira suicida, chegou à conclusão de que cada forma ou estilo de linguagem, holisticamente compreendido, é um }way of worldmaking (reatando com o "pragmatismo" ou o "perspectivismo" nietzscheano, para o qual }Es gibt keine Tatsachen, nur Interpretationen, não existe nenhuma fato, apenas interpretações), se o mundo não é independente das diferentes versões que dele damos, como conservar o absolutismo e o universalismo da metafísica, da lógica em sua pretensão semântica, ou a idéia de que a Razão e a Verdade conservam valor regulador, no sentido kantiano da palavra?
Em sua resposta a Thomas McCarthy (11), e militando contra a tradição kantiana, Rorty, na verdade, leva ao extremo a operação crítica de Kant e radicaliza a tese da autonomia da Razão Prática. Já Kant dizia ser necessário limitar o conhecimento, para abrir espaço para a fé e para moral. Rorty acrescenta: é preciso neutralizar a idéia de verdade para dar lugar ao exercício da liberdade.
Podemos dizer que Rorty "re-descreve" o projeto crítico kantiano: onde se lê idéia reguladora (o "trabalho infinito da Razão"), leia-se a possibilidade permanente de oferecer "alternativas concretas" ou o reconhecimento da incontornável "falibilidade" do juízo humano. Com Protágoras, temos o reconhecimento de uma esfera pública livre, onde argumentos podem ser trocados e a persuasão exercida, sem a postulação de qualquer instância incondicional.
Ainda com Protágoras, reconhecemos que a "Aufklãrung" ou o progresso intelectual, moral e político, não depende de nenhum absoluto trans-histórico: a morte de Deus ou o vazio do céu platônico das idéias não transforma necessariamente a história humana numa história contada por um idiota, cheia de rumor e de furor. É possível ser ateu e antimetafísico e ser perfeitamente razoável e civilizado. Basta reconhecer o "kairós" da boa mudança.
Mas os percursos de Protágoras e de Rorty não são exatamente paralelos. Se as duas epistemologias niilistas (ou antiepistemologias) são parecidas, são díspares os efeitos ético-políticos que delas se retiram. Ao universalismo da ética e da política protagóricas, opõe-se o etnocentrismo confesso de Rorty. A idéia da boa cultura democrática de Rorty (com Protágoras, as boas mudanças são sempre as permitidas pela democracia parlamentar) está mais ligada à idéia de liberdade do que à idéia de igualdade. Numa palavra: o "naturalismo" de Rorty talvez parecesse excessivamente "culturalista" aos olhos de Protágoras.
Acompanhando com simpatia a resposta de Rorty a McCarthy, não podemos acompanhá-lo no seu passo final, lá mesmo onde parece desviar-se da boa tradição da "Aufklãrung" sofística, ou do radicalismo do liberalismo norte-americano original. A dificuldade parece ser a recusa, por Rorty, do valor pragmático da Teoria Social. A tese de Rorty é a seguinte, se a entendi bem: para compreender o fenômeno do imperialismo (e tentar, como é justo, mudar alguma coisa no mundo) não é necessário analisar o funcionamento do capitalismo ao longo de nosso século. Literalmente, a idéia é: o cidadão não precisa de filosofia para guiar sua prática política: idéia, digamos, pouco grega e nada sofística.
O que essa desqualificação da "Teoria Social" deixa escapar, ou não percebe, por sob a diversidade local das formas políticas e culturais (por voluntário etnocentrismo), é a unidade global dentro da qual elas estão combinadas, e as carrega todas num único movimento. O próprio pulular contemporâneo dos nacionalismos e dos racismos revigorados parece ser o sintoma (mesmo se a contracorrente) desse processo de unificação que não é puramente econômico. Não se trata aqui de montar uma complicada Teoria da Razão ou da Verdade, de alcance transcultural ou de edificar uma metafísica do social. Trata-se de um fato –a economia globalizada ignora as fronteiras culturais e governa as diferentes "Lebensformen"– e para descobri-lo basta a leitura cotidiana dos jornais. Como promover as boas e desejáveis mudanças locais, sem levar em conta o grande rio que nos leva, a todos, em deriva? Penso aqui em Robert Kurz, que mostra os efeitos destrutivos da globalização do capitalismo, que se exprime mesmo numa "terceiro-mundização" do Primeiro Mundo: por exemplo, nos eventos recentes de Los Angeles, que mostram a explosão de Ruanda no coração da Califórnia.
Um discípulo de Dewey não deveria abrir-se para essa dimensão da experiência contemporânea? Será que ler os jornais e refletir sobre o que eles contêm implica em incorrer no pecado de regressão à metafísica? (12) Tudo se passa como se Rorty tivesse que inflacionar a pretensão epistêmica da Teoria Social, para poder recusar-se a devolver ao liberalismo norte-americano seu radicalismo original. Nesse sentido, parece inevitável acompanhar Thomas McCarthy, na conclusão de sua resposta à réplica de Rorty.
3
Mas acompanhá-lo significará, necessariamente, instalar a maquinária transcendental do Professor Apel? Ou melhor, para deixar de ser etnocêntrico, será necessário restaurar a soberania da Razão clássica, recorrendo à idéia de "contradição pragmática", isto é, promovendo um "aggiornamento" dos antigos argumentos invocados contra a sofística?
É o que veremos, a seguir, analisando um ensaio de Karl-Otto Apel, onde tenta justificar a necessidade contemporânea de constituir, contra a onda invasora do relativismo, a muralha de uma "Macro-ética Universalística da Co-responsabilidade".
Neste ensaio (apresentado em conferência na Universidade Federal de São Carlos, em 1992), Apel propõe-se realizar três tarefas: 1) mostrar que nosso tempo (ou a sociedade planetária em que vivemos) exige de modo urgente essa nova disciplina racional que batiza de "Macro-ética"; 2) desmontar as objeções que a filosofia acostumou-se (no período do positivismo ou da decadência da filosofia) a opor aos projetos de fundamentação racional de uma Ética universal ou universalística; 3) apresentar uma solução positiva para tal fundamentação, nos termos de uma "pragmática transcendental da comunicação humana ou do discurso argumentativo".
Entendamo-nos, desde início, sobre o vocabulário utilizado. Macro-ética é palavra plasmada para indicar o nível mais universal da reflexão ética que visa a humanidade como um todo, ou a humanidade que se descobre como totalidade solidária da responsabilidade por sua auto-preservação e da preservação do planeta (o ecúmeno generalizado), como a equipagem de uma nau em perigo num oceano adverso ou inimigo. Nível de reflexão superior àquele que denomina de meso-ética, que delimita, como
(continua)

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