São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O RELATIVISMO COMO CONTRAPONTO

BENTO PRADO JR.

(continuação)
a maior parte da tradição filosófica, de Platão a Hegel, a responsabilidade dentro do campo da "Polis", ou do Estado Nacional. Meso-ética, que representa, por si mesma, um salto na direção do universal, ao transcender à chamada micro-ética, que se circunscreve à esfera da solidariedade setorial do grupo, do clã ou da família (e que se exprime, por exemplo, na "omertà", na solidariedade do silêncio na Máfia ou em organizações semelhantes).
Em cada um desses níveis, Apel visa a relação horizontal da comunicação inter-humana no seu cruzamento com a relação vertical que, através da técnica, liga grupos, nações e a própria humanidade com seu solo ou seu horizonte natural, numa palavra, à Terra, que é simultaneamente residência e matéria de trabalho para homens em sociedade. Está claro que esses três níveis (micro, meso e macro) figuram, na óptica de Apel, três momentos sucessivos da história social da natureza, no cruzamento entre comunicação inter-humana e transformação técnica da natureza, que correspondem às figuras antropológicas do homo faber, do homo sapiens e do homo universalis.
Pouco importa aqui a consistência desse esquema genético (como pouco importava, para Rousseau, o caráter factual de sua reconstrução hipotética da gênese da sociedade humana, no "Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens"). Aqui como lá, a "construção" hipotética tem sentido semelhante ao que se chama de "construção" em psicanálise. O que importa é o fato presente, que é preciso iluminar com este ou outro esquema genético. E o fato presente é, de algum modo, o fim do Estado Nacional como limite da Razão Prática. O caráter Transnacional da ciência, da técnica e da economia planetarizou irreversivelmente a humanidade e recoloca a questão da responsabilidade também em termos transnacionais.
Numa palavra, o Terceiro Mundo (na esfera da economia) e a própria natureza (do ponto de vista dos cuidados éticos da ecologia) são a evidência da ilimitação dos efeitos da política e da economia e da urgência de uma ética planetária. Se a qualidade moral de minha ação pode ser medida pelos seus efeitos (mesmo se o efeito, como resultado, não era intencionalmente visado), é claro que a responsabilidade se generaliza na medida mesma da ampliação, mesmo involuntária, dos efeitos de meu gesto. Se os efeitos da política européia (ou do primeiro mundo) repercutem tão drasticamente fora de seus limites, é preciso ampliar correlativamente a esfera da responsabilidade. Aldous Huxley se inquietava, depois da Primeira Guerra Mundial com a emergência do }Brave New World; hoje a inquietação visa a dura realidade do }Poor Third World (Pobre Terceiro Mundo).
O diagnóstico é simples, mas aparentemente não poderia ser mais verdadeiro. E não seríamos nós, brasileiros ou terceiro-mundistas, que deveríamos protestar contra a exigência de uma ética planetária da co-responsabilidade, que protegesse tanto a natureza quanto nossas sociedades que percorrem sua órbita à distância do sol do primeiro mundo, mas tão miserável e vulneravelmente expostas às menores instabilidades e explosões da estrela central.
O que interessa não é a generosidade da intenção, que, no entanto, deve ser sublinhada, mas os argumentos que lhe dão corpo racional. E o argumento começa de maneira negativa. Trata-se de desmontar dois argumentos diferentes que se opõem, tradicionalmente, ao projeto de fundação universalística da ética.
Um primeiro, mais pobre, de natureza puramente epistemológica, é aquele que atribui à razão uma vocação exclusivamente teórica (contemplativa ou descritiva) e que lhe proíbe, portanto, qualquer palpite no domínio dos valores. De Max Weber ao neopositivismo, com efeito, ciência e razão são definidos como essencialmente neutros, do ponto de vista moral. Mas não é difícil a Apel apontar como o ideal da racionalidade, neutra moralmente, pressupõe algo como uma moralidade implícita, ou uma hierarquia de valores sem a qual a idéia de razão neutra desmorona por si mesma. Ninguém ignora, com efeito, que a objetividade ou a neutralidade são mais um ideal da Razão do que um fato ou uma prática corrente na cidade científica. Mas a própria prática científica, antes de qualquer decisão moral explícita, parece implicar em regras de produção, comunicação, transmissão e controle do saber positivo.
Nas entrelinhas do projeto de um saber neutro e universal, infiltram-se, insidiosamente, as normas do projeto de uma humanidade universal. A simples colaboração epistêmica, com o ascetismo que implica, renova a idéia da submissão dos homens e dos grupos aos fins universais da razão. Quer queria, quer não queira, a Razão Prática refloresce inevitavelmente no coração da fria Razão Teórica.
Outro argumento, mais forte, a ser considerado, é um argumento que poderíamos qualificar como antropológico ou sócio-histórico. É o argumento que Apel vai exumar na filosofia contemporânea, naquilo que ele denomina como neo-aristotelismo ou neo-hegelianismo. Contra a tradição de neutralização da Razão Prática, essa literatura florescente (Apel fala do }boom of ethics, numa expressão que é melhor conservar em inglês) não é capaz de restaurar, com a ética, o ideal universalista, porque a liga à decisão prática de conservar o "éthos" tradicional de uma forma de vida sociocultural particular. Contra uma razão neutra e universal, protejamos nossa forma de vida (Apel insiste no vocabulário do segundo Wittgenstein, talvez nem sempre com boas razões), resguardemos essa forma particular da humanidade.
Não sabemos se se deve falar, aqui, de conservadorismo ou de conservacionismo (no sentido de multiplicar, na medida do possível, reservas socionaturais para a preservação de humanidades locais, nem sempre afinadas com o movimento cosmopolita da história). E, sobretudo, Apel distingue, nessa vaga neo-aristotélica ou neo-hegeliana, tendências (do ponto de vista da tonalidade sentimental ou política), mais progressista no mundo anglo-americano, mais conservadora no mundo germânico. A referência a Aristóteles, no caso, com a oposição entre "Theoria" ou "Epistéme" (que conduzem à universalidade da Razão) e a "Phrónesis" (prudência ou sabedoria, que circunscreve o ideal da "boa vida" à circunstância concreta do sujeito moral), não será, talvez, a melhor para qualificar esse estilo de restauração, digamos, regressiva da reflexão ética. O melhor paradigma seria o fornecido por Rousseau, na sua crítica ao universalismo do cristianismo, religião da humanidade, que não serve de cimento para consolidar a coesão da cidade e de horizonte para a reconciliação do indivíduo singular com sua própria existência em seu contexto político, sempre local.
Neste ponto, o argumento de Apel busca apoio na crítica endereçada por Jean-Luc Ferry e Alain Renault ao pensamento francês pós-moderno (em particular Lyotard) no livro já traduzido entre nós, sobre o chamado "Pensamento 68" (livro tão pouco rico do ponto de vista do pensamento, quão interessante e informativo do ponto de vista de história das idéias). É claro que o estilo desse livro e o do ensaio de Apel não coincidem, que cada um tem o seu estilo local, e que os inimigos comuns são visados de perspectivas muito diferentes. A crítica de Apel a Rorty é feita dentro de um horizonte que não é nem de longe semelhante, é claro, às críticas que Alain Renault e Jean-Luc Ferry dedicam a Lyotard ou Derrida; as atmosferas e os estilos locais são muito diferentes e só podem comunicar-se na atmosfera extenuada do conceito reduzido à sua magreza máxima (13).
Isto não impede que haja uma decisão, ao mesmo tempo filosófica, ética e política de mesma natureza: trata-se de promover a volta a Kant e ao bom espírito da filosofia das luzes, única herdeira da boa tradição grega da filosofia. Imaginemos uma Atenas planetária (sem trabalho escravo, é óbvio) onde predomine a argumentação racional sobre interesses individuais, grupais ou classistas. Eis o ideal filosófico, ético e político, que é preciso restaurar neste momento em que, por causa da internacionalização da ciência, da técnica e da economia, ele se aproxima das condições materiais de sua realização.
Uma palavra, apenas, de, digamos, "psicanálise" ou de genealogia de projetos teórico-práticos dessa natureza. Seria interessante, para quem dispusesse da cultura necessária, nos diferentes domínios da história da filosofia, da cultura e da sociedade, nos últimos cem anos, fazer a periodização e a história recente dos sucessivos "retornos a Kant" que reiteramos desde o fim do século passado, nos domínios diferentes da filosofia política e da filosofia da ciência. Retornos que não caracterizam sempre a retomada da nobre tradição da }Aufklãrung. Assim, não era exatamente com }Aufklãrer (pelo menos segundo seus críticos alemães ou franceses) que Foucault pensava reatar, com a suspensão arqueológica do valor de verdade do discurso filosófico, os fios de ligação com a empresa crítica de Kant, em seu livro }As Palavras e as Coisas.
Mas, repitamos, para maior clareza: os resultados desse percurso pelos obstáculos erigidos contra a razão prática, somados à experiência da fisionomia do mundo contemporâneo, impõem ao filósofo, segundo Apel, uma tripla tarefa: 1) a fundamentação de uma ética universalmente válida, que não seja prisioneira dos estilos locais ou nacionais de vida; 2) a fundamentação de uma ética universalmente válida que, no entanto, não fira as diferentes formas de vida, ou seja, que não imponha um modelo uniforme da boa vida ou da vida boa; 3) o estabelecimento de uma espécie de Tribunal da Razão Prática (a ser situado, digo "cum grano salis", talvez em Haya, talvez em Genebra), que garanta a pluralidade dos estilos de vida, responsabilizando-se por limitá-los quando se tornam concorrentes, por assegurar-lhes direitos iguais e por impor-lhes igual co-responsabilidade, que administre o irredutível diferencial da condição humana.
Mas essa necessidade histórica e urgente de um tribunal dialógico da Razão Prática ainda carece do seu bom fundamento filosófico radical, que Karl Otto Apel se propõe a oferecer. Tarefa que a conferência que estamos analisando procura definir de maneira clara, embora reconhecidamente programática. Programa que consiste em restabelecer o vínculo kantiano entre autonomia moral e "Weltgeschichte" ou a história mundial do gênero humano, com os instrumentos fornecidos pelo "linguistic turn" da filosofia analítica e pelo espírito, por assim dizer "lógico", do pragmatismo de Peirce.
Mas para atingir tais alvos, é necessário despojar a idéia de racionalidade prática de sua dimensão exclusivamente pragmática ou técnica: alguns projetos na boa direção, diz Apel, malogram por limitar-se a uma concepção exclusivamente técnica (onde o modelo é fornecido pelas teorias formais do "decision making") da racionalidade social, que não distingue entre o pacto hobbesiano entre os lobos e a bela cidade kantiana dos fins da Razão.
Mas qual é o ponto arquimediano que nos permitiria separar o joio do trigo, ou o pragmatismo naturalista de um Rorty (que é reconhecido por Apel como subjetivamente progressista, embora
(continua)

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