São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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O RELATIVISMO COMO CONTRAPONTO

BENTO PRADO JR.

(continuação)
"objetivamente" regressivo) do bom pragmatismo transcendental a ser erigido? É o ponto crítico em que o argumento de Apel visa seu inimigo principal: o relativismo histórico. Ou a idéia mais geral de que o argumento racional tem pés de barro, ou está assentado num senso-comum fluido. A idéia de uma pré ou infra-estrutura nocional, que precede necessariamente a análise racional, e que está presente na obra e no pensamento de autores tão diferentes como Collingwood, Heidegger, Gadamer, Wittgenstein, Searle, e Rorty (numa enumeração disparatada que não é de minha responsabilidade).
Para sair do embaraço (já que, deste ponto de vista ao menos, quase todo mundo é relativista), Apel, como bom kantiano, recorre ao "coup de force" do Fato de Razão. Como passar do fato à Razão, do empírico ao transcendental, do patológico ao normal, senão com o apoio no ponto arquimediano de um fato da razão, de uma situação empírica que, por sua peculiaridade, impõe a norma da Razão?
O argumento de Apel é uma armadilha simples. Não se trata de retomar, pura e simplesmente, o argumento democriteano-platônico, mas de escavar, no fato da diaphonia ou da discórdia, o ideal de comunicação inter-subjetiva que parece impregná-la, como que à revelia. Ao argumentar contra alguém, parece que já estou amarrado pelas cláusulas de uma espécie de contrato social comunicativo. Ao rés da experiência mais imediata, torna-se visível o horizonte transcendental-pragmático. Pragmático porque é o meu ato de fala que me condena a submeter-se ao tribunal dialógico da Razão; transcendental, porque tal tribunal se impõe a priori, mesmo se emerge no nível do fato.
Numa espécie de "argumento ontológico" invertido, onde o fato (ou a existência) implica o direito (ou a essência). Estilo próprio da filosofia crítica –pelo menos a crer em Nietzsche, que lembra que a exposição kantiana da possibilidade dos juízos sintéticos a priori se explica "Vermõge eines Vermõgens", isto é, em virtude de uma faculdade, um pouco como o médico de Molière, que explicava que o ópio fazia dormir por possuir uma "virtus dormitiva". No mesmo texto, Nietzsche utiliza –em francês– a expressão: "niaiserie allemande" (14).
Antes de discutir o argumento de Apel, lembremo-nos de uma passagem dos "Memorabilia" de Xenofonte (IV, 4) que opõe, de maneira curiosa, Sócrates a Hipias. Hipias contrapõe a Sócrates a antítese entre justiça natural e legalidade convencional. Sócrates, por sua vez, elogia, ironicamente, a familiaridade de Hipias com a essência incondicional da justiça, que lhe tornaria possível pôr fim às divergências dos jurados em seus vereditos e eliminar definitivamente todos os litígios, as revoltas e as guerras. Aqui é Sócrates (e não o sofista) que sublinha o fato da discórdia e da "diaphonia", pondo em cheque a idéia de uma "comunidade comunicativa ideal".
O problema talvez resida na passagem sub-reptícia, efetuada por Apel, na transição de uma ética do diálogo para uma ética dialógica. Sendo a primeira condição necessária da segunda, não chega a ser sua condição suficiente. A transparência argumentativa não elimina toda a opacidade do diálogo. Pelo menos é o que sugere Wittgenstein no parágrafo 612 de "Sobre a Certeza": "Eu disse que `combateria' o outro homem –mas não lhe daria eu razões? Certamente; mas até onde iriam elas? No fim das razões emerge a persuasão (pense no que ocorre quando os missionários convertem os nativos)".
É essa alternativa de conversão ou exclusão do Outro, descrita por Wittgenstein, que parece estar presente no belo espaço iridescente da comunidade comunicativa. É nesse sentido, creio, que Barbara Cassin, referindo-se à filosofia de Apel, fala de uma "exclusão transcendental" (15). Exclusão que se superpõe exatamente ao gesto de banimento através do qual o pensamento grego clássico projetava o sofista para fora do "logos" e da humanidade.
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O que ganhamos com esse zigue-zague extravagante? Dizer, simplesmente, nem relativismo nem absolutismo, não nos leva a lugar algum e deixa as coisas como estão. De que serve alinhavar alguns argumentos contra o pragmatismo (naturalista ou transcendental), se nada colocamos no lugar?
Mas, justamente, ao usar, como epígrafe, o belo texto de Pascal, eu procurava antecipar essa objeção e marcar meu alvo. Não se trata de suspender ou de ultrapassar o conflito enunciado na frase, mas de fazer trabalhar a tensão que a atravessa. Fazê-lo, é reconhecer os limites da filosofia (lá onde ela se comunica com a não-filosofia) como definidores de sua essência: como se a possibilidade da filosofia nascesse de sua mais interna impossibilidade. Ou reconhecer que não se pode tudo conceder à retórica (com a idéia de re-descrição) (16), mas que não se pode negar-lhe tudo (com a exigência de restauração transcendental do Absoluto e do Universal).
O que eu queria não era opor a visão relativista à visão absolutista do mundo para problematizar a ambas. Era, antes, sublinhar uma ligação interna, a estrutura de contraponto, que articula esses dois pontos de vista. Quando falo nesta articulação interna entre absolutismo e relativismo, penso também no que há de comum entre os pragmatismos naturalista e transcendental, isto é, uma concepção conversacional da filosofia.
Por diferentes que sejam as atitudes de Rorty, de um lado, e Apel-Habermas, de outro, todos partilham a definição liberal-positivista da racionalidade como lugar público de troca de argumentos, ou a definição do Ocidente como a tradição da "Great Conversation". Como se houvesse uma arena neutra no teste da pretensão de Verdade das interpretações metafísicas, ignorando a natureza "arquipelágica" da filosofia (17). Num caso como no outro, quem é o excluído desse grande simpósio conversacional? O pensador solitário. Aquele que se opõe ao "homo loquax", como diria Bergson, ou seja, Montaigne, Pascal, Rousseau, Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov e Don Miguel de Unamuno.
Mesmo sem endossar a dialética de Adorno, é impossível não subscrever, aqui, a seguinte proposição de seu livro "A Dialética Negativa": "A dialética opõe-se tão abruptamente ao relativismo quando ao absolutismo; não é buscando uma posição intermédia entre os dois, mas, ao contrário, passando aos extremos, partindo da idéia deles, que ela procura mostrar sua não-verdade". Embora tal não seja a intenção de Adorno, essa proposição parece iluminar esse pensamento de Pascal e a dialética pascalina em geral.
Através da dialética relativismo-absolutismo, o que se visava era a oposição entre Filosofia e Visão do Mundo. A bem dizer, e quase involuntariamente, com esse objetivo acabei apenas por comentar, à distância, as duas frases de Pascal, com efeitos, talvez, para a totalidade das "Pensées". Nem retórica demais, nem de menos? Nas próprias }Pensées, Pascal diz, mais ou menos: "Dê-lhe vinho demais ou de menos, não encontrará jamais a verdade". Dê-lhe retórica demais ou de menos, relativismo demais ou de menos... restar-lhe-á, no máximo, uma "visão do mundo", jamais uma Filosofia. Não se trata, em nenhum desses casos, do elogio aristotélico da temperança e do meio-termo. Talvez, pelo contrário, de um elogio dos extremismos e suas reviravoltas, ou de uma crítica da estabilidade exigida pelas Visões do Mundo. Mas isso já é tema para outra discussão.

NOTAS
1. Richard Rorty, "Consequences of Pragmatism", University of Minnesota Press, 1982, pág. 167.
2. "The presocratic philosophers", de Jonathan Barnes, Routledge & Keagan Paul, London, 2ª ed. revista, 1982, e "The Sophists", de W. K. C. Guthrie, Cambridge Univ. Press, 1971, trad. francesa, Payot, Paris, 1976.
3. Como no título da peça de Pirandello: "Cosi é (si vi pare)"
4. Apud Barnes, op. cit., pág. 543. Sublinhemos que, na linguagem da filosofia grega, a palavra "phantasia" corresponde ao que chamaríamos de representação.
5. Barnes, op. cit., p. 348.
6. Cf. "Vida Comum e Ceticismo", Brasiliense, São Paulo, 1993, págs. 5-21
7. Oswaldo Porchat, op. cit., pág. 15.
8. Barnes, op. cit., pág. 549.
9. Apud R. Mondolfo, "O Pensamento Antigo", Mestre Jou, São Paulo, vol. 1, 1971, pág. 79.
10. Cf. McCloskey. "The Rethoric of Economics"
11. Jean Pierre Cometi (ed.), "Lire Rorty: le pragmatisme et ses conséquences", Éd. de l'Éclat, 1992.
12. Eu pergunto: Podemos nós sair da Metafísica ou do impasse pascaliano?
13. A intervenção de Paulo Arantes, como debatedor, por ocasião da exposição desta conferência, descreve com rigor e riqueza estas diferenças a que aqui aludo: ele nos fornece a necessária geo-político-metafísica diferencial para diagnosticar desacordos profundos sob concordâncias de superfície e concordâncias profundas sob discordâncias superficiais.
14. Cf. o belo comentário deste texto de "Para Além do Bem e do Mal", por Rubens Rodrigues Torres Filho, "Ensaios de Filosofia Ilustrada", Brasiliense, 1987, págs. 30-33.
15. Cf. Barbara Cassin, "Ensaios Sofísticos", Siciliano, São Paulo, 1991.
16. Cf. Bento Prado Jr. e Mark Julian Cass, "A retórica da Economia de McCloskey", revista "Discurso", nº 22. Nesse texto, reconhecendo que McCloskey (bem inspirado por Rorty) recorre aos instrumentos adequados em sua cruzada contra o positivismo que ainda obscurece a idéia que os economistas norte-americanos têm de sua prática teórica, apontamos para o perigo de jogar o bebê com a água do banho. Nossa pergunta, na ocasião, era: estamos nós condenados a seguir os passos de Dewey, pelo simples fato de recusar a megalomania do fundacionalismo? Toda a epistemologia está morta já que morreram o positivismo e a "unified science"? Será que a descrição da epistemologia, apresentada em "Philosophy and the Mirror of Nature" é razoável? Ser anti-positivista não significa necessariamente ser rortyano. Não ser rortyano, no caso, significa propor ou aceitar uma arqueologia alternativa do modernismo, ou aceitar a idéia, no entanto sensata, de que, por exemplo, o ceticismo humeano não é supra ou desumano, como fica claro no ensaio de Gérard Lebrun sobre Hume, "La boutade de Charing Cross", revista "Manuscrito", abril de 1978.
17. Cf. Gérard Lebrun, "Kant et la fin de la Métaphysique". A. Colin, 1979, pág. 504. É curioso que um filósofo perfeitamente "continental" afirme, contra os "insulares", que a filosofia não é um continente.

(*) "Eu tenho uma incapacidade de provar, invencível por todo dogmatismo. Eu tenho uma idéia de verdade, invencível a todo pirronismo".
Este texto é uma versão retrabalhada da conferência feita por Bento Prado Jr. no seminário "Relativismo Enquanto Visão de Mundo", no evento Banco Nacional de Idéias, produzido por Waly Salomão e Antônio Cícero em maio, em São Paulo. Esta conferência e as demais do encontro serão editadas em agosto pela Francisco Alves.

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