São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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Deluy defende poesia antilírica

DA REDAÇÃO

No último dia 15, o poeta e tradutor francês Henri Deluy participou no auditório da Folha de um debate sobre as atuais tendências da poesia contemporânea francesa.
Participaram do evento o poeta Haroldo de Campos, o crítico literário e professor da USP João Alexandre Barbosa e o poeta e tradutor Nelson Ascher, editor da "Revista USP" e articulista da Folha –que mediou o encontro.
Como redator-chefe da revista "Action Poétique", Deluy concentrou sua exposição em poetas cuja obra, desde a década de 60, se caracteriza pela "objetividade" da linguagem poética, em reação ao lirismo do movimento surrealista.
Em sua intervenção, Haroldo de Campos ressalvou que o poeta Francis Ponge era um exemplo de surrealista que havia feito uma poesia antilírica, estabelecendo uma ponte entre o movimento e a tradição dos poetas de expressão direta como Stéphane Mallarmé e Ezra Pound.
Nessa discussão em torno da rejeição francesa de seu passado estético, João Alexandre Barbosa recorreu a Valéry para destacar os papéis complementares do conteúdo e da forma na poesia.
Leia abaixo os principais trechos do debate.

Henri Deluy
"Na França de hoje, a poesia está quase totalmente marginalizada. Marginalizada pelo público e pela mídia. As tiragens dos livros, mesmo em editoras grandes como a Gallimard, são limitadas e dificilmente vendem mais de mil exemplares.
Além disso, nos graus mais adiantados da escola e da universidade, estuda-se somente o sentido da poesia, o significado do texto –tudo aquilo, enfim, que não é a poesia.
Apesar disso, existe um movimento de avaliação e reflexão, iniciada pelos poetas da minha geração nos anos 60, que considera nossa herança poética dentro e fora da língua francesa, a partir de uma perspectiva da escritura.
Não se deve esquecer, a esse propósito, que foi somente nos anos 60 que a França acabou conhecendo os textos dos grandes formalistas russos e dos neoformalistas anglo-saxãos.
Na França, nós tínhamos duas grandes correntes dominantes: a que vinha do surrealismo e a que vinha da poesia da Resistência –e muitas vezes essas duas correntes se uniam, na medida em que muitos dos poetas da poesia da Resistência provinham do surrealismo: Aragon, Éluard, René Char, Robert Desnos etc.
Coube à minha geração, portanto, colocar em questão essa relação entre ideologia e literatura, que não era senão um resquício exacerbado da ideologia do romantismo.
Para nós, tratava-se de lutar contra a grande corrente do lirismo de origem surrealista. Seus dois representantes mais evidentes –apesar de sua ligação com o surrealismo nunca ter sido direta– eram Saint-John Perse e René Char, que faziam uma poesia de tom profético, oracular.
Em contraposição, nós propúnhamos uma escritura antilírica, antimusical, contrária aos jogos de palavras de uma vertente que a todo tempo proclamava sua própria poeticidade, seu rebuscamento linguístico.
Como alternativa e ruptura, a poesia francesa contemporânea recorre a técnicas que evitam as metáforas e as imagens, produzindo uma poesia de grande simplicidade sintática, que evita todas as torções da língua, substituindo-as pela construção do próprio poema.
Nesse sentido, esta nova corrente remonta à poesia americana dos anos 30, à poesia dos objetivistas. Fazemos nossa a palavra de ordem de William Carlos Williams, para quem se deveria falar mais dos fatos do que de idéias, sentimentos e emoções."

Haroldo de Campos
"Henri Deluy falou do interesse de sua geração pela poesia dos objetivistas norte-americanos como William Carlos Williams e Louis Zukofsky. Eles eram muito ligados a Ezra Pound, que sempre se bateu por uma a poesia de expressão direta, dentro da linhagem de Mallarmé.
Assim, o que me espanta, quando ouço falar desta leitura do objetivismo na França, é que Deluy não mencione o nome de Francis Ponge, que também pertence à grande tradição de Mallarmé.
Em "A Aranha na Parede", por exemplo, ele concebeu um poema visual que retomava o tema mallarmeano da aranha e, com a ajuda de um pintor, transformou o jogo sintático na personagem principal do texto.
O vínculo entre Ponge e Mallarmé, para nós, brasileiros, manifestou-se na poesia concreta dos anos 50 –dez anos, portanto, antes da geração de Deluy.
Mallarmé é o maior poeta moderno, é o Dante da era industrial. Existe, dessa forma, uma conjunção entre sua poesia, a leitura que Pound fazia de Mallarmé e a idéia da construção poética direta concebida pelos objetivistas a partir de Pound.
Ao se falar da herança poética surrealista, portanto, seria preciso lembrar de Ponge, que foi muito mais importante do que Michaux, Éluard ou Char. Ponge também veio da tradição surrealista, mas ele trabalhava com o sentido da "coisa", dos objetos.
Aliás, o maior poeta brasileiro vivo, João Cabral de Melo Neto, responde nitidamente aos paradigmas, defendidos por Deluy, de uma poesia da gramática, contrária ao lirismo da metáfora.
Entretanto, eu não faria uma crítica programática da metáfora, apesar de compreender que, para a sua geração, o surrealismo representasse a doença da poesia tanto na literatura francesa quanto na literatura hispano-americana."

João Alexandre Barbosa
"Gostaria de tomar como ponto de partida a possível relação que possa existir entre a marginalização da poesia e as leituras que a reduzem ao significado.
Numa edição recente da revista "Critical Inquiry", o crítico Peter Brooks, que é professor da Universidade de Yale, escreveu um texto intitulado "Estética e Ideologia: Onde fica a Poética?".
Nesse ensaio, ele afirma que na literatura e, sobretudo, na poesia, a busca por significados, por sentidos, leva precisamente à leitura daquilo que não é a poética.
Essa afirmação, porém, já estava na tradição francesa mais ou menos recente, dos anos 30, sobretudo num poeta e pensador como Paul Valéry.
Numa das anotações de "Tel Quel" (que reúne parte dos "Cadernos" de Valéry), ele definiu o poema como "hesitação entre o som e o sentido".
Valéry não toma o partido nem do sentido, nem do som, mas propõe a idéia de que o poema é uma passagem vertiginosa que o poeta deve perseguir.
A escolha unilateral seria, nesse caso, uma inserção na estabilidade. A hesitação, portanto, é uma aceitação da mais profunda marginalidade da poesia. Se nós buscarmos pacificar essa relação com a poesia, nós corremos o risco de nos desfazermos dela própria.
Assim, com relação ao que parece ser o impulso essencial de um momento da poesia francesa, não se deve esquecer que o antilirismo sempre supôs o lirismo.
Numa passagem famosa, Valéry escreve: `A poesia se vincula, sem nenhuma dúvida a algum estado dos homens anterior à escritura e à crítica. Encontro, pois, um homem muito antigo em todo poeta verdadeiro. Ele bebe ainda nas fontes da linguagem. Ele inventa versos um pouco como os primitivos melhor dotados deviam criar palavras ou ancestrais de palavras.'
Valéry reafirma, assim, a idéia de que a criação poética sempre exigiu também o seu contrário."

Nelson Ascher
"O problema da interpretação das diferentes tradições poéticas diz respeito antes de mais nada ao problema do intercâmbio entre as várias línguas.
Estamos acostumados a pensar na grande poesia francesa da época de Baudelaire, Verlaine e Rimbaud como uma poesia universal, e não como um fenômeno especificamente francês.
O que os franceses escreviam se tornava, para o bem e para o mal, o idioma internacional da poesia. Assim, quando o surrealismo surgiu, parece que, de alguma maneira, ele respondeu às aspirações, ansiedades, curiosidades de poetas nos quadrantes mais diversos do mundo.
Entretanto, havia na poesia francesa outras tendências, distantes do surrealismo, que não foram percebidas fora do contexto de língua francesa e apesar da maior parte da intelectualidade falar o francês.
Isto explica porque Valéry, por exemplo, é desconsiderado na França como poeta, embora continue sendo respeitado por pessoas que não são, por assim dizer, nativas da língua francesa."

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