São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 1994
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Como "caiu" o campo de treinamento de Lamarca?

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA FOLHA

Vinte e quatro anos depois, a Guerrilha do Vale do Ribeira ainda provoca ressentimentos; talvez por conter alguns pontos obscuros. Existem versões das muitas biografias publicadas sobre a época, como "Lamarca, O Capitão da Guerrilha", de Emiliano José e Oldack Miranda, livro que serviu de base para o filme "Lamarca", e existe a versão da Polícia Militar, num vídeo recém-produzido pelo seu Centro de Informações.
Um dos pontos obscuros é quem delatou para a polícia a área de treinamento da guerrilha.
Afirmei, num artigo publicado pela Folha no último dia 16, que "depois da delação de Celso Lungaretti, um ex-guerrilheiro que conhecia bem a área, uma vasta operação militar... cerca a área". A jornalista Judith Patarra, no seu livro "Iara", escreveu: "Lungaretti revelou a área". No entanto, o ex-guerrilheiro, em carta publicada na "Ilustrada" da última quarta, contesta a informação.
Não estou nem nunca estive envolvido num complô para "acirrar a ira dos autoritários de esquerda" contra Lungaretti e procuro escrever sobre os acontecimentos ocorridos em 1970 no Vale do Ribeira com a isenção de um pesquisador; Patarra não foi guerrilheira e escreveu o livro, um dos melhores documentos sobre a época, depois de colher depoimentos de diversos guerrilheiros e sobreviventes da Guerrilha do Vale, entre eles Darci Rodrigues e Mário Japa.
Lungaretti afirma, em sua resposta, que pode "ter sido responsável involuntário pelo episódio, mas não o delator que Marcelo Paiva pinta".
Segundo o Aurélio, delatar é "denunciar, apontar, revelar, deixar perceber, evidenciar". Circunstâncias desumanas, no caso, "a intensa tortura", levaram Lungaretti a, como ele mesmo diz, "contar" à polícia o terreno desativado em que os guerrilheiros treinavam, próximo, sem ele saber, do terreno verdadeiro. Lungaretti, então, apontou, deixou perceber, enfim, delatou.
Em fevereiro de 70, Mário Japa, codinome de Shizuo Osawa, membro da Coordenação Regional da VPR, capotou seu carro e desmaiou. A polícia encontrou no carro documentos e mapas que indicavam que a VPR tinha um campo de treinamento de guerrilha.
Preso e torturado pelo ex-delegado Fleury, Mário conseguiu despistar ao afirmar que a área seria na Ilha do Bananal (GO), quando o sítio situado no Vale do Ribeira se chamava Bananal. Desde então, a OBAN (Organização Bandeirantes, que servia de apoio ao combate à guerrilha) sabia que Lamarca comandava um campo de treinamento de guerrilha. Só não sabia onde.
A VPR, junto com outras organizações, preocupada com a segurança do campo, chegou a sequestrar, no dia 10 de março, o cônsul japonês de São Paulo, para tirar Mário da prisão. O guerrilheiro, trocado pelo cônsul, partiu para o México, de onde conseguiu enviar informações de que não denunciara, apesar da tortura, a área exata do campo, evitando que o mesmo fosse desmobilizado.
Já Lungaretti, na prisão, revelou o antigo terreno, na região de Jacupiranga, e o homem de ligação com os guerrilheiros, Maneco de Lima, ex-prefeito da cidade.
Dia 18 de abril, após "tomar" Jacupiranga, prender e torturar mais de 20 moradores, entre eles o corretor de terras Elpídio Pinto, o professor Bonadia, o advogado Pinto Ribas, o farmacêutico Guerra, o administrador de fazendas Frauzino e o ex-prefeito Maneco de Lima, proprietário do sítio de 80 alqueires onde se instalou o campo de treinamento, não foi difícil para o Exército localizar a área: Capelinha, numa região serrana a 39 km de Jacupiranga.
O ex-sargento Marival Chaves, que trabalhou 17 anos como especialista em análise de informação no DOI-Codi e no Centro de Informações do Exército, em entrevista por telefone à Folha, de Vitória (ES), confirma que "Lungaretti foi quem abriu a área de existência no Ribeira".
"Sei da participação através de documentos internos, informes, depoimentos que analisei. Que foi ele o delator da área, não tenho dúvida... Delatou ou comentou sobre a existência da área de treinamento de guerrilha na região do Vale do Ribeira."
Durante a entrevista, Chaves, um dos primeiros ex-agentes a descrever os bastidores dos órgãos de informação do Exército, se surpreende: "O Celso (sic) foi preso no Rio, levado para São Paulo e depois para a área, para mostrar a área. Fica difícil ele negar a evidência."
Lungaretti pede, em sua carta dirigida à Folha, que as velhas feridas não sejam "sadicamente" mexidas. Peço desculpas a ele e agradeço o fato de, na contestação, ter clareado pontos obscuros. Não procuro julgá-lo, nem discutir os efeitos terríveis da tortura sobre um preso. Lamento saber que, até hoje, ele sofre em função da violência cometida na prisão.
Cedo ou tarde, independentemente de Lungaretti, a área do campo de treinamento seria descoberta. Não discuto se era loucura ou ingenuidade da VPR e de seu comandante, Carlos Lamarca, montar uma base de treinamento a menos de 200 km de São Paulo.
Também não discuto a validade da luta armada. Em memória dos milhares de torturados, desaparecidos e mortos pelo regime militar, procuro, apenas, lembrar este período, sem ressentimento, apesar de, como Lungaretti, ter todos os motivos para tê-lo.

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