São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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O que nasce do cano de uma arma

CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Sobre a Violência" é um texto importante na obra de Hannah Arendt (1906-1975). Representa, muito ao seu modo, um parar para pensar a respeito do tema, suscitado pelo contexto da rebelião estudantil de 1968, pela guerra do Vietnã e pela discussão, no âmbito da "Nova Esquerda", do papel dos meios violentos de resistência à opressão, como a guerrilha, particularmente nos processos de descolonização. Constitui, assim, como era usual na sua maneira de elaborar conceitos e tratar de assuntos, uma reflexão teórica a partir de problemas concretos da agenda política contemporânea. Nesta reflexão, certos temas arendtianos recorrentes são retomados, o que também permite dizer que este livro se insere de maneira coerente na sua trajetória intelectual.
O livro desdobra-se em três partes e, na primeira, o tema recorrente é o da "ruptura", ou seja: o da brecha entre o passado e o futuro, trazida pelo esfacelamento da tradição intelectual que não tem categorias suficientemente abrangentes para lidar de maneira apropriada com o ineditismo das experiências políticas do século 20, entre as quais avulta o totalitarismo, tanto na sua vertente nazista quanto na stalinista.
Nesta linha, Hannah Arendt indica como o século 20 encontrou, na violência e na multiplicação de seus meios através da revolução tecnológica (por exemplo, a bomba atômica), o seu denominador comum, apontando que a "Nova Esquerda" tem precisamente, como uma de suas características, o tomar conhecimento da maciça intromissão da violência criminosa em larga escala na política. São exemplos paradigmáticos desta intromissão os campos de concentração, o genocídio, a tortura e os massacres em massa dos civis nos conflitos bélicos que tipificam as modernas operações militares.
Esta tomada de conhecimento pode, em contraposição, instigar o emprego dos meios não violentos de resistência à opressão, como a desobediência civil que ela tratou num importante ensaio. Pode também induzir a um "pathos" e a um "élan" que inspirou, e é disso que ela cuida nesse livro, uma tomada de posição favorável à violência e à aceitação, por exemplo, da argumentação de Sartre, no conhecido prefácio a Fanon, que é através da violência que o Homem se recria. Na sua postura crítica, Hannah Arendt sublinha que não é da tradição intelectual do idealismo hegeliano ou do materialismo de Marx (através da recriação constante do Homem pelo trabalho), que se chega à glorificação da fúria vulcânica da violência.
Se a violência não é para ser glorificada, o que é este fenômeno, que Sorel, um dos seus teóricos e apologistas, viu como permeado de obscuridades? É desta maneira que Hannah Arendt inicia a segunda parte. Nesta, o tema recorrente é a originalidade da análise arendtiana do poder e da criatividade da ação.
Esquerda e direita, Writht Mills e Max Weber, Mao Tse-tung e Bertrand de Jouvenel, todos enxergam na violência, observa Hannah Arendt, a mais flagrante manifestação de poder, entendido como o domínio do homem sobre os homens que exige a efetividade do comando. Não é esta, como se sabe, a visão de Hannah Arendt que, como realçou Habermas, deslocou na sua análise a temática do poder do seu emprego e aplicação, para o de sua criação e manutenção.
Para ela, o poder, que é inerente a qualquer comunidade política, resulta da capacidade humana para agir em conjunto, o que, por sua vez, requer o consenso de muitos quanto a um curso comum de ação. Por isso, poder e violência são termos opostos: a afirmação absoluta de um significa a ausência do outro. É a desintegração do poder que enseja a violência, pois quando os comandos não são mais generalizadamente acatados, por falta do consenso e da opinião favorável, implícita ou explícita, de muitos, os meios violentos não têm utilidade. É esta situação-limite que torna possível, mas não necessária, uma revolução. Em síntese, para Hannah Arendt, a violência destrói o poder, não cria o poder.
Ela fundamenta esta sua afirmação caracterizando a violência como instrumental e diferenciando-a do poder (a capacidade de agir em conjunto), do vigor (que é algo no singular, é o caso do vigor físico de um indivíduo), da força (a energia liberada por movimentos físicos ou sociais) e da autoridade (o reconhecimento inquestionado que não requer nem coerção nem persuasão e que não é destruído pela violência mas sim pelo desprezo).
A violência multiplica, através dos instrumentos que a tecnologia fornece de maneira cada vez mais exponencial, o vigor individual. Por isso a forma extrema de violência é o um contra todos. O que surge do cano de uma arma não é poder mas a sua negação, e deste "poder de negação" não brota o seu oposto. Neste sentido, aponta Hannah Arendt, é equivocada a confiança hegeliano-marxista no "poder de negação dialético", ou seja, a de que os opostos não se destroem, mas desenvolvem-se, transformando-se. A violência não reconstrói dialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila.
A violência destrutiva do poder está, no entanto, muito presente na vida do século 20. O que a explica? Este é o tema da terceira parte do livro. Para Hannah Arendt, a violência e sua glorificação explicam-se pela severa frustração da faculdade de agir no mundo contemporâneo, que tem suas raízes na burocratização da vida pública, na vulnerabilidade dos grandes sistemas e na monopolização do poder que seca as suas autênticas fontes criativas.
O decréscimo do poder, pela carência da capacidade de agir em conjunto, é um convite à violência, observando Hannah Arendt que aqueles que perdem esta capacidade, sentindo-a escapar de suas mãos, sejam governantes sejam governados, dificilmente resistem à tentação de substituir o poder que está desaparecendo pela violência. Ela aponta, aliás, numa arguta nota, como a ineficiência generalizada da polícia, nos EUA e na Europa, tem-se visto acompanhada pelo acréscimo da brutalidade policial.
Nesta terceira parte, o tema recorrente fundamental é a análise da hipocrisia como provocadora da violência. O que converte os "engagés" (engajados) em "enragés" (enfurecidos), diz Hannah Arendt, retomando sua reflexão sobre o fenômeno revolucionário, sobretudo na França, é a palavra que não revela a imprescindível transparência do espaço público mas a esconde na opacidade. Daí a idéia de arrancar, pela violência, as máscaras da hipocrisia dos governantes. Violência, no entanto, só tem sentido quando é uma re-ação e tem medida, como é o caso da legítima defesa. Perde a sua razão de ser quando se transforma numa estratégia "erga omnes", ou seja, quando se racionaliza e se converte em princípio de ação.
Para esse equívoco contribuiu, no plano teórico, sublinha Hannah Arendt, a revivescência do vitalismo, ou seja, Bergson e Nietzsche na versão soreliana e nos seus desdobramentos, que leva ao uso de modelos orgânicos de concepção da política, nos quais a criatividade da vida do poder justifica a criatividade da violência em função da penalidade biológica da fraqueza e da morte.
Esta postura arendtiana também se compreende à luz de outro ponto chave de sua reflexão, que é a contestação do medo da morte como o princípio da política. Para ela, não é a mortalidade, com a qual se preocupa a metafísica, a categoria central da política. É a natalidade, a esperança do novo, que provém da criatividade do início da ação conjunta que anima a "vita activa".
Esta esperança, que ela afirma em "A Condição Humana", apesar de todos os traumas do século 20, significa uma impugnação ao medo, que do estado de natureza de Hobbes às entranhas do poder de Canetti, representa uma visão do poder e da política oposta a que ela buscou construir. Neste sentido, e porque ela está, diria eu, de acordo com Giucciardini, para quem entre os homens normalmente a esperança pode mais que o temor, que ela fez neste pequeno grande livro uma oportuna e vigorosa crítica da apologia da violência.

Este texto, publicado com exclusividade, é o prefácio à nova edição do livro "Da Violência", de Hannah Arendt, que será lançada até o final do mês pela Relume-Dumará

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