São Paulo, domingo, 17 de julho de 1994
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O real e a belíndia

ALOIZIO MERCADANTE

As primeiras reações ao lançamento da última etapa do Plano Real atestam que a população brasileira não perdeu a esperança em derrotar a inflação. Sem dúvida nenhuma, o amplo programa de mídia que lançou o real foi pródigo em aguçar as expectativas e a confiança nessa recente tentativa de enfrentar esse velho e resistente problema. Infelizmente, não bastam confiança e boas intenções.
A crise e as repercussões inflacionárias têm martirizado os trabalhadores engolindo seus salários, desorganizado a produção, desajustado as contas públicas, acentuado ineficiências e ainda produziu uma nova forma de segregação social no país: o apartheid monetário. Mais de dois terços da população brasileira não têm acesso aos bancos ou quaisquer formas de moeda indexada, que garantiam alguma proteção contra a corrosão do valor da moeda.
Portanto, é compreensível que a sociedade receba o Plano Real de braços abertos e até esqueça as decepções e frustrações que teve com os planos anteriores. A grande dúvida é se o real não passa de mais um plano passageiro, subordinado ao calendário eleitoral, ou se será capaz de equacionar de forma eficiente e duradoura esses graves problemas econômicos.
Entretanto toda essa fé fica abalada. O Plano Real apenas colocou um verniz reluzente e sofisticado em mais uma tentativa de ajuste convencional de inspiração neoliberal, assentado no corte de gastos sociais, contração dos salários, semicongelamento do câmbio, no congelamento das tarifas públicas e, sobretudo, num forte aperto monetário, com taxas de juros muito elevadas.
De partida o plano não conseguiu sustentar sua principal premissa de fazer um ajuste fiscal e orçamentário que trouxesse um mínimo de equilíbrio às contas públicas. Na primeira fase, a equipe econômica limitou-se em realizar um profundo corte nos gastos sociais, sem resolver nada do ponto de vista orçamentário, uma vez que as previsões de despesas com juros serão ultrapassadas pelas altíssimas taxas de remuneração da dívida pública. Além da inaceitável situação de estarmos entrando no segundo semestre sem que o país sequer tenha um orçamento aprovado.
Na fase dois, a idéia criativa de derrubar a inflação inercial por meio de uma superindexação da economia com a URV, para posterior desindexação, foi desperdiçada pela má administração desse mecanismo e pela subordinação à agenda eleitoral, que acabou produzindo dois choques de preços e uma perda do poder aquisitivo dos salários.
Tomado pela ideologia neoliberal de que as simples forças de mercado conseguem controlar os preços dos oligopólios, o governo segurou os salários e perdeu-se em ameaças vagas contra os vários setores que não tiveram pudores em estimular um amplo processo de remarcações. O governo não atuou para coordenar expectativas, negociar regras de conversão para URV e coibir abusos. O resultado não podia ser outro: inflação em URV. A carestia aumentou com a elevação da cesta básica em cerca de 18% em relação ao salário mínimo no período. Utilizando uma figura de retórica cara a um amigo e importante assessor ministerial, terminamos a segunda fase com preços da Bélgica e salários da Índia, com a maioria do povo brasileiro sem acesso às belas notas de R$ 100,00, que continuarão como uma real ilusão.
Pouco importa se a âncora for cambial ou monetária. A rigor, a estabilidade da moeda depende pouco do regime monetário, mas fundamentalmente da qualidade da política macroeconômica. Com essa defasagem inicial entre preços e salários, somados as diferentes formas de congelamento utilizadas pelo plano (tarifas públicas, câmbio, contratos etc.), o governo até poderá manter temporariamente baixos os patamares inflacionários.
No entanto, deixará para o próximo governo uma inflação reprimida e uma verdadeira bomba de efeito retardado, com pressões sociais por uma reindexação desorganizada da economia, necessidade de realinhamento de preços públicos e câmbio, uma negociação salarial crescentemente conflituosa em função da passagem da indexação diária para os reajustes anuais. Isto tudo em meio a uma forte ameaça de desestruturação produtiva, recessão e desemprego.
Efetivamente, a defasagem cambial e a brutal taxa de juros constituem-se em extraordinária ameaça à estrutura produtiva. O atraso cambial fará desabar o saldo comercial, prejudicando de forma crescente a competitividade do setor exportador e estimulando as importações, impondo uma retração do nível de atividades e aumento do desemprego.
Com o Plano Real, a distribuição de renda entre lucros e salários não estará apenas congelada em uma situação extremadamente perversa, mas sofrerá ainda os efeitos da inflação futura que, embora menor, continuará existindo.
Os problemas que irão emergir após as eleições são tão graves que exigirão da futura equipe um intenso esforço de coordenação entre a apuração e posse.
O governo Lula atacará a inflação de forma abrangente e articulada desde o primeiro momento, sem choques, quebras de contratos e confiscos da poupança, mas enfrentando com determinação a cultura inflacionária de uma parcela da elite, que aprendeu a enriquecer sem produzir. O Brasil precisa superar a belíndia e o apartheid social, que infelizmente este plano reforçará.

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