São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Tesouro dos tesouros

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Livro dos livros, compêndio de todos os conhecimentos, suma gnosiológica em 32 mil páginas –enfileirados na estante, seus 32 volumes ostentam uma solidez austera e impessoal. São muitos os seus autores, forçosamente severos os seus textos, eduardianamente elegantes as suas lombadas. Quando em dúvida sobre quase todas as coisas entre a letra "A" e o substantivo "zygote" (zigoto), é a ela que milhões de pessoas costumam recorrer.
Bíblia dos ignorantes e dos curiosos que sabem ler inglês, a "Encyclopaedia Britannica" é a mais reputada obra de referência do mundo. Mesmo em países dotados de similares nacionais, mas sem condições de manter os seus verbetes frequentemente atualizados, o colosso anglo-saxão lidera as preferências.
Anglo-saxão em termos. Apesar do nome, faz um bocado de tempo que a "Britânica" –originalmente publicada em Edimburgo, onde três ingleses a criaram em 1768, sob a forma de fascículos e à base de artigos recortados de jornais e revistas– virou norte-americana. A última edição totalmente britânica, a 11ª, data de 1911.
Já era, então, propriedade de um argentário do Novo Mundo, Horace Hooper, que a vendeu em 1920 para a Sears, Roebuck, que a amparou até 1943, quando a Universidade de Chicago dela se assenhoreou. Expandiu-se à beça, aperfeiçoou-se em alguns aspectos e virou um negócio da China, cujo crescimento não terá limites depois que houver um CD-ROM ao lado de todos os computadores. Mas a mística de suas antigas edições permanece inabalada.
A favorita continua sendo a 11ª, valiosa peça de colecionadores, disputada a peso de ouro não apenas por bibliófilos mas também por gourmets da erudição. Coordenada por Hugh Chisholm e com uma divisão por assuntos diferente das anteriores, trouxe pela primeira vez um índice onomástico e contou com a equipe de colaboradores mais representativa de sua história. Entre os expertos recrutados, dois destaques: o professor inglês Alfred North Whitehead, autor do verbete sobre matemática, e o príncipe (soldado e geógrafo) russo Piotr Kropotkin, a quem coube explicar o que é anarquismo.
Na edição que possuo –datada de 1968, um dos muitos suplementos à 14ª, lançada em 1929– quem escreve sobre a ciência dos números são outros matemáticos e, no lugar de Kropotkin, encontramos o alemão Karl Wolfgang Deutsch. Todos seguramente competentíssimos, mas sem o estro especial de Whitehead e do príncipe russo, para não falar da aura que os cerca.
Até dois anos atrás, para se ler o que Whitehead, Kropotkin e tantos outros afamados luminares escreveram para a "Britânica" era preciso recorrer a uma biblioteca de grande porte ou conhecer um dos raros possuidores da 11ª edição. Para se ler o ensaio que James Frazer fez sobre "Totemismo e Tabu", só consultando uma edição ainda mais remota, a 9ª, posta à venda em 1875, na qual, aliás, também cintilavam dois Huxleys (Thomas Henry e Julian), discorrendo, respectivamente, sobre biologia e evolução.
Em 1992 o acesso a essas relíquias foi tremendamente facilitado com a chegada às livrarias de "The Treasury of the Encyclopaedia Britannica".
Dividida em duas seções, a primeira delas dedicada à evolução de dez campos do conhecimento nos últimos dois séculos, era uma arca de sabichões, dispondo em sua segunda parte de 46 ensaios publicados na "Britânica" entre 1815 e 1974, ano de sua 15ª e última edição. Essa preciosidade está chegando ao Brasil nos próximos dias, traduzida pela Nova Fronteira.
Por razões de economia, aproveitou-se somente a segunda parte da edição original. Nada a objetar: os ensaios são o "ne plus ultra" da arca. Com 344 páginas, "O Tesouro da Enciclopédia Britânica" talvez seja a novidade mais atraente da próxima Bienal do Livro.
Em 1815 Walter Scott, o popularíssimo autor de "Os Cavaleiros da Távola Redonda", produziu para a 4ª edição da "Britânica" um ensaio sobre algo que de fato conhecia a fundo: cavalaria. É o mais antigo da coletânea, repleta de textos centenários assinados por, entre outros, Thomas Malthus ("Controle Populacional"), Thomas Young ("A Pedra de Roseta"), Robert Louis Stevenson ("Pierre Jean de Branger"), William Rossetti ("Percy Bysshe Shelley") e Thomas Macaulay ("Samuel Johnson").
Alguns textos são curtos, estilo verbete (por exemplo, o de Marie Curie sobre rádio, o de Cecil B. De Mille sobre cinema, o de George Jean Nathan sobre teatro norte-americano e o de Lee Strassberg sobre representação), outros bem longos (Anthony Burgess gastou 22 páginas para explicar em detalhes o que é um romance e Arthur Koestler o mesmo espaço para autopsiar o riso). Coincidência ou não, os ensaios de Burgess e Koestler –este, como convém, já divertido no título ("Uma contração de 15 músculos faciais")– são dois dos trabalhos mais deleitáveis da antologia.
Com todo respeito aos editores ingleses da "Britânica" e aos que transformaram em fetiche a lendária edição de 1911, nunca me pareceu que os norte-americanos tivessem baixado o nível da enciclopédia (leia trechos de alguns verbetes nesta página). Partiram deles os convites a Sigmund Freud (que em sete páginas resumiu o que é psicanálise para a 13ª edição, de 1926), Albert Einstein (que escreveu sobre a noção de espaço-tempo), T.E. Lawrence (a quem encomendaram uma história compacta da guerra de guerrilhas), Bertrand Russell (que se incumbiu das consequências filosóficas da Relatividade), George Bernard Shaw (que traçou a evolução das idéias socialistas) e Leon Trotski (que recebeu US$ 106 para perfilar Lênin e o fez pouco antes de fugir da ex-URSS). Nenhum dos citados foi esquecido por Clifton Fadiman, editor de "O Tesouro da Enciclopédia Britânica" e também autor do seu instrutivo prefácio, indesculpavelmente barrado da tradução brasileira.
Claro que Fadiman, há 43 anos na equipe da "Britânica", em nenhum momento se refere ao físico Harvey Einbinder. Talvez devesse tê-lo feito. Einbinder dedicou boa parte de sua vida a apontar insuficiências da enciclopédia. Virou uma Nêmesis da "Britânica".
Sim, houve gente que fez ou diz que fez isso. Aldous Huxley foi um desses. Ele, portanto, sabia, ao contrário de muitos de nós, quem, diabos, foi Pierre Jean de Beranger, verbetado por Stevenson.

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