São Paulo, segunda-feira, 8 de agosto de 1994
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LUÍS NASSIF

LUÍS NASSIF

Prá que discutir com madame?
Na sexta-feira passada Brasil e França experimentaram momentos de grande perplexidade, enquanto em um salão de chá paulistano discutia-se a relevante questão: é melhor um Sartre ou um encanador para presidente da República?
As máquinas pararam na França, houve sensível aumento na mortalidade infantil no Nordeste, todos aguardando que aquelas almas femininas, reunidas no salão renascentista, conseguissem solucionar o mais estimulante desafio intelectual com que se depararam: é "in" ou "out" estabelecer tais diferenças?
A atriz atroz, defensora interessada de todos os intelectuais que assumiram a presidência nas últimas décadas, garantiu que é "in". A namoradinha do Brasil, boazinha como ela só, rebateu que é "out".
Grandes banqueiros foram tirados do trabalho por esposas preocupadas, presentes ao ágape, para que repartissem com elas essa grande dúvida, mais estimulante que um vírus eletrônico no Selic.
Sociólogos petistas e tucanos se engalfinharam no campus, entupiram as seções de cartas dos jornais, assaltantes interromperam assaltos, o trânsito engarrafou, os juros subiram, o mercado parou, enquanto não se resolvia a relevante questão, capaz de, por si, ou definir as eleições presidenciais ou resolver a questão da falta de água.
No cemitério existencialista, uma caveira olhou para a outra e comentou preocupada: "Que não é sério, a gente sabia, mas precisavam me envolver nisso?".
Filósofo "out"
Não há informações se Ortega y Gasset costumava filosofar em chás beneficentes ou se desenvolveu alguma especialização em encanamentos. Há dúvidas até, se vivo fosse, se seria convidado para o festim, posto que filósofo espanhol não é tão "in" quanto um francês.
Se fosse, certamente acharia de um provincianismo feroz, a atriz atroz. Mas ficaria com o encanador, porque conhecia suficientemente os seus –os intelectuais– para não levá-los a sério, fora do mundo das idéias.
Em ensaio clássico sobre Mirabeau –relançado recentemente pela Editora Universidade de Brasília, e que me foi presenteado por um intelectual raro, porque compromissado com a ação– Gasset traça um perfil precioso da espécie.
Não peça a um intelectual que se comprometa com a ação –diz ele. O intelectual é basicamente um escrupuloso. E o escrupuloso é o calculista da ética. Quando pensa em tomar alguma atitude, imediatamente bate uma dúvida escrupulosa que, até ser removida, matou a iniciativa. O intelectual sempre vai tratar de levantar uma indagação acerca de sua atitude, para dispor do álibi para nada fazer. Utiliza a idealização da realidade como desculpa para o imobilismo.
Em outras palavras, se estourar o encanamento de sua casa, ou se precisar de um presidente da República, não conte com um intelectual. A não ser depois que ele tiver resolvido todas suas perplexidades acerca da conveniência ou não de se envolver em um trabalho de encanador –e depois que a água tiver levado seu último cristal.
Curto e grosso como ele só, o encanador petista encerrou a discussão com uma verdade definitiva: sem encanador essa mulherada não se vira sozinha, sem sociólogo, se vira.
Na rua, um velho passou assobiando antigo samba brasileiro, do grande compositor existencialista Janet de Almeida: "Madame diz que a raça não melhora/ que a vida piora/ por causa do samba/ (...) Madame tem um parafuso a menos/ só fala veneno/ ai meu deus que horror!"

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