São Paulo, terça-feira, 9 de agosto de 1994
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Antonioni sumiu dentro do cine Gazeta

ARNALDO JABOR

Da Equipe de ArticulistasNada mais parecido com um filme de Antonioni do que sair com Antonioni. Eu nunca tinha pensado que um dia eu iria ao cine Gazeta com ele assistir a um filme de Jack Nicholson sobre lobisomem. Mas fui.
Foi o fim de uma tarde muda e mágica, que começou com meus pés pisando o hall de mármore rosa do novo "L'Hotel" –luxuoso e árido, "gobelins" entre marfim e metais dourados– e chegando até a mesa onde estava Antonioni, ao lado do cineasta Walter Hugo Khouri, anfitrião natural do "maestro".
Sua mulher, Enrica Fico, bela e tenaz, lhe segredou meu nome. Antonioni anda com dificuldade, não consegue falar, mas me sorriu imperceptivelmente, quase um pequeno esgar na boca muda pelo derrame que teve em 1985. Aí, a realidade passou a se mover como que comandada por um filme de Antonioni.
Eu fui olhado por ele quando cheguei e confesso um calafrio: eu entrava finalmente no campo de visão daqueles olhos que, desde 1960, eu imaginava como puderam desconstruir o cinema. Finalmente eu virava um objeto do seu mundo, um objeto como o pequeno ventilador de "O Eclipse", os postes de luz de "A Noite", as árvores que se moviam no vento improvável de "Blow Up", as grandes pedras da ilha de "A Aventura", quando Lea Massari desaparece.
A partir daí, tudo ficou tocado por uma aura de verdade, sob seus olhos parados que eu consultava sempre, para ver se eu estava dentro da lógica de sua "mise-en-scène". Na mesa, houve um intróito agitado, com personagens falantes, sobremesas do fim do almoço –(eu cheguei atrasado e estava com fome). Fiquei calado. "Almoçou?" "Claro..." Fiquei com uma fome orgulhosa, pois não ousaria me empapuçar ali na frente do asceta. Comi distraidamente uns restinhos dos biscoitos que acompanham o café.
Tudo parece falso diante do olhar de Antonioni. O diálogo na mesa, que era todo realista e psicológico, com a minha chegada entre apresentações e sorrisos, foi sendo despedaçado, esgarçado pelo seu silêncio. Aos poucos, as coisas iam perdendo o ritmo falso de filme americano, sem furos, incessante, e as pausas começaram a se infiltrar.
De repente, eu estava vendo o silêncio dos circunstantes diante do drama ali do mestre, o desamparo das garçonetes, a pálida solidão do barman de negro no ambiente rosa, as migalhas de pão, os restos de biscoito jogados na mesa, minha mão sorrateira indo pegar mais um, xícaras vazias. Aumentava o vácuo na mesa, que eu tentava preencher com frases animadas, como se não estivesse ali o drama do mestre, sua doença.
É eu tinha de situar meus sentimentos para com ele. Ele me olhava. Eu não podia mentir. O que sentia eu por ele? Pena. Sentia pena, sim, mas não podia mostrar só isso. Havia mais. Havia também inveja em mim, pena misturada com inveja, aumentada ao folhearem na minha frente um colorido livro de suas glórias, com fotos das muitas mulheres lindas que ele teve, magro e chique, dirigindo cenas, câmeras "Mitchells", Veneza, Lucia Bosé, Monica Vitti, Lea Massari, La Moreau, etc...
Rachado ao meio, eu sentia pena e inveja. Seus olhos esperavam uma definição minha, para me desprezar ou aceitar. Pensei em convocar sentimentos mais fugazes, mais abstratos como "respeito", "solidariedade", etc. Mas, não; essa subliteratura não colava. Vi então que eu sentia uma espécie de raiva também: "Como ele vem me ver somente depois de um ataque, somente agora que não fala mais? Será que ele fala com Enrica e finge de mudo para se proteger de idiotas como eu?"
Vi-me por instantes através dos olhos de Antonioni. Decerto ele me invejava também, por eu não estar paralizado, ao menos por enquanto. Mas, de dentro dele, eu me via como um desconhecido cineasta da América do Sul que nada fez para mudar a linguagem do cinema.
Claro que eu falei do meu filme que ganhou uma Palma de Ouro em Cannes, aproveitando a deixa do Khouri, bom e amigo, que tentava me cobrir com um manto de interesse. Teria Antonioni vindo ao Brasil na força da juventude? Falaria comigo, então? Talvez ficasse tão mudo quanto agora e então minha humilhação seria pior.
Ao menos agora eu podia atribuir seu silêncio a seu derrame. E assim, hesitando entre pena, inveja e raiva, eu fiz um "mix" gelado destas emoções e ostentei uma certa frivolidade crua, uma impiedade desatenta, como se tudo estivesse normal ali e o ritmo da vida fosse "americano".
Mas, a máquina continuava no ritmo dele.
Vocês (oh, jovens "clipeiros"!) não sabem da importância deste homem mudo. Ele é uma espécie de Albert Camus do cinema. Como ele, Antonioni teve uma revolta contra o real. Não se conformou com as convenções de Hollywood que determinavam o ritmo de nossas vidas.
Nossas vidas são descontínuas, velozes, lentas, súbitas, sem final obrigatório. Antonioni nos libertou de um mecanismo de defesa contra a morte, que o ritmo dos americanos inventou. A morte fica nua em Antonioni, o mistério, o suspense, o desaparecimento das pistas, a falta de motivo para a tragédia.
De repente, Enrica me diz que Antonioni quer ir ver "Lobo" com o Jack Nicholson, ali no cine Gazeta, ao lado. Eu logo disse que já tinha visto. Antonioni então me olhou fundo e fez uma expressão, como me perguntando: "E que tal o filme?" Eu tremo e digo: "Tem uma cena linda, com lobos negros num campo de neve". Antonioni fez uma careta contente de aprovação e pareceu dizer: "Lobos sobre a neve? Então, vamos!"
Eu tremia de orgulho, enquanto andava com ele devagar pela av. Paulista, com Enrica e Andrea Boni, seu secretário. Quando entramos no Gazeta, estavam passando os letreiros finais da última sessão, a música de Ennio Morricone soava dramática e as imagens de "Wolf" se refletiam sobre o paletó claro de Antonioni que se sentou na quarta fila.
Rolou o filmão. Na saída, Antonioni me deu um olhar meio combalido: "O cinema acabou mesmo..." parecia dizer. Retornei um sorriso, feliz do conluio entre "vítimas".
Aí então começou a acontecer o meu delírio. Ao sair do Gazeta, (que é no meio de um imenso prédio da Fundação Casper Líbero), Antonioni desceu de elevador com o secretario e eu e Enrica fomos de escada.
Esperamos Antonioni chegar, mas o elevador veio vazio. "A senhora não trouxe um senhor assim assim?", pergunto à velhinha cabineira. "Não vi não". "Vai olhar embaixo, minha tia..." Subo no outro elevador. Ninguém nos andares de cima. Fico entre o pânico e o riso. "Cacete, Antonioni sumiu no predião do Gazeta, como Lea Massari sumiu em 'A Aventura', como o homem morto sumiu em 'Blow Up'!"
Passam os minutos e nada do Antonioni. Enrica, nervosa, foi correndo até o hotel. Nada. Eu já imaginava manchetes: "Antonioni desaparece no Brasil" ou, pior, "Antonioni assaltado e morto no cinema". Volta o elevador. Nada.
A velhinha me olha como se eu fosse louco. "A senhora já viu na garagem?" "Vim de lá, não tem velhinho nenhum!" "Minha senhora, a senhora procure por todos os andares", berro nervoso. "Eu não subo. O senhor fale com o zelador!", responde a velhinha antipática. "Pronto, porra, Antonioni sumiu, cacete, foi sequestrado por algum cineclubista e, claro, vão dizer que a culpa foi minha!"
Já me vejo interrogado pela polícia italiana, Massimo Girotti no papel de delegado. A velhinha ligou um radinho de pilha. Um "rap". Comecei a suar frio. Antonioni não vinha.
Até que, súbito, um grito. O rosto pálido de Enrica se acende. Antonioni surge já na esquina da alameda Campinas, num corte direto, sem continuidade, num "plano geral" aberto, vazio. Não perguntei nada, como ele surgira ali. Seu mistério foi respeitado.
E aí, hora da despedida. Ao apertar-lhe a mão, penso: "Que estou sentindo? Beijo ele?" Não. Seria muito derramado. Digo "ciao". Mas, aí, Antonioni me olhou dentro do olho, sorriu calidamente e eu vi que ele me aceitava. Com um travo na garganta, pensei: "Se eu chegar à idade dele, daqui a 30 anos, lembrarei deste dia e terei sido mais feliz porque vi seus filmes e o conheci".
E finalmente localizei meu sentimento: era gratidão.

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