São Paulo, segunda-feira, 15 de agosto de 1994
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Canibalismo político

FLORESTAN FERNANDES

Alain Touraine abriu mais um campo de análise na metassociologia: o da apologética dos amigos que tentam galgar o cume do poder governamental e estatal (Folha, 31/07/94, pág. 1-3). Com o respeito devido a um especialista ilustre e que possui veia metafísica maior que a vocação científica, o artigo deixa patente que a nova disciplina contém dificuldades quase invencíveis e requer imaginação exacerbada, como a dos futurólogos e das antigas pitonisas.
Permitam-me uma breve citação incisiva. Quase no fim do artigo afirma, com serenidade sacrossanta: "Se Cardoso não for eleito, o Brasil corre o risco de afundar no caos e na violência, porque as necessidades da economia e as exigências da sociedade se tornarão imediatamente incompatíveis". O que pensar dessa frase arrojada (e certamente sincera)? Que a sociologia metafísica não vale dois tostões de mel coado.
Nós já afundamos no caos e na violência há séculos; deles não saímos nem sairemos com os partidos aliados do PSDB e do senador Fernando Henrique Cardoso. São eles que mandam e brutalizam o povo. Com eles no poder, a coabitação será selvagem e imprimirá continuidade a privilégios que flutuam, mas permanecem sempre à testa do poder político indireto e estatal.
Esse não é, todavia, o tema do presente comentário. Como contrapeso a uma concepção esdrúxula, de que basta um homem para mudar a história (uma penitência napoleônica?), o diretor do Instituto de Estudos Superiores de Paris acende e apaga uma vela ao diabo: "Uma política modernizadora puramente liberal é, portanto, impossível no Brasil, e o apoio concedido pela opinião pública a Lula pode acabar se transformando em força de ruptura se o Brasil abrir as suas portas aos Chicago Boys". "Por isso, há alguns anos, Lula, fundador de sindicatos modernos no ABC de São Paulo e defensor do Brasil moderno, podia aparecer como o candidato mais capaz de unir o duplo objetivo de modernização econômica e de transformação social. Mas, no PT, o velho Brasil comeu o jovem."
"Comer o jovem" implica uma redação maliciosa... Tomando pelo melhor, dada a natureza da digressão, significa uma ação canibalesca. Qual seria "o velho Brasil" do PT, partido recente e constituído por rebeldes ramificados em tendências politicamente diferenciadas?
Sem dúvida o da Articulação, também dividido por petistas "light" e "xiitas", que não entendem nada do Alcorão. Em termos de fins imediatos, todos queremos a eleição de Lula e nos batemos ardorosamente por ela. Não porque Lula possa, como personalidade singular, modificar o Brasil por um passe de mágica. Mas porque a "ruptura" só pode vir de baixo, com um novo tipo de educação, a universalização da cidadania e a desobediência civil.
Um sociólogo de vulto intelectual ímpar disse-me: "Touraine é o último herói civilizador francês". Talvez seja. Talvez não. O neoliberalismo nos trará outros escribas colonizadores, a serviço do imperialismo dos oligopólios tecnocráticos. Ele apenas está, pois, no divisor que separa o lamentável do calamitoso.

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