São Paulo, sexta-feira, 9 de setembro de 1994
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Que comida levar para um inglês ver?

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Saint Antony's College, na Universidade de Oxford (Inglaterra), realiza de hoje a domingo o encontro anual de um bando de cozinheiros acadêmicos, historiadores, nutricionistas, sociólogos, botânicos, escritores, livreiros e muitos outros interessados em comida.
Os responsáveis por esse projeto de tratar a comida como assunto de verdadeira importância, dando-lhe o valor que ela merece, são Alan Davidson, ex-embaixador de sua majestade, e Theodore Zeldin, conhecido historiador.
Os dois se reuniram pela primeira vez em 79, com o projeto de viabilizar uma das mais antigas funções da universidade: a reflexão sobre o cotidiano. E o que há de mais cotidiano do que o cotidiano da comida?
O grupo tem a sua própria revista: a incrivelmente pedante e simpática "Petits Propos Culinaires". E sua musa inspiradora é Elizabeth David, a inglesa que mais influenciou o mundo "escrito" da comida nas últimas décadas. Os ingleses não têm a melhor comida do mundo, mas como escrevem bem sobre ela!
Pelo símbolo do simpósio de 94, é fácil descobrir qual o assunto deste ano. O dodo. Uma ave desengonçada, gorda como um peru, de asinhas curtas que a impediam de voar. Extinta, totalmente extinta. Vivia nas Ilhas Maurício e foi vista pela última vez em 1681. O nome vem do português "doudo", doido, doidão, bobo.
O dodo é a criatura mais famosa da fauna de Oxford e jaz no Museu da Universidade, como um conjunto de ossinhos –uma garra pontuda e um crânio com bico comprido– no meio de dinossauros e bustos de cientistas eminentes.
É tudo o que resta do dodo, meio dodo, que seja. A Europa conheceu doze dodos vivos, um deles o de Oxford. Mas só lá foi imortalizado. Não por sua carne oleosa e enjoativa, comida só por porcos, macacos e marinheiros, mas por Lewis Carroll, que o usou como personagem de "Alice no País das Maravilhas". Muito em segredo o autor se identificava com o dodo, no desengonço, na timidez e no atabalhoamento.
O tema deste ano, com o dodo na proa, é o seguinte: "Desaparecendo hoje, extinto amanhã. Ingredientes, técnicas, pratos em perigo".
As reflexões, provavelmente, vão girar em torno de questões como: o que está desaparecendo do mundo em matéria de comida natural ou processada?
Só de vez em quando um ingrediente natural se perde para sempre, como o dodo. Normal é que as coisas desapareçam de uma ou mais regiões ou que passem de comuns a raras. Variedades e cultivares de frutos e hortaliças muitas vezes somem de vista, e o processo de resgatá-los é difícil e complicado.
Os especialistas andam com os cabelos em pé atrás de batatas e maçãs perdidas. Pode chegar o dia em que nós, já desenvolvidos e primeiro-mundistas, estaremos chorando de saudade da banana ouro, da manga coquinho, do araçá, do jambo branco, da bala de ovo, do alfenim.
E a poluição? A exploração excessiva? Os custos impossíveis? As idas e vindas da moda?
Cinquenta pequenos ensaios serão apresentados, e alguma novidade há de surgir. Mesmo no meio de famigerados "foodies", que costumam ser politicamente incorretos no desvario de papar bem depressa a comida em extinção, antes que ela acabe de vez.
No momento em que escrevia este artigo, a única coisa que estava angustiando este dodo brasileiro que em má hora inventou esta viagem era que ele precisava levar alguma coisa representativa do país de origem.
Cruzes! Que difícil! Cachaça? É bebida, não é comida. Goiabada? A alfândega não vai deixar passar. Umas cabacinhas para botarem água na comida? Será que a cabacinha é mesmo originária do Brasil ou sempre floresceu dependurada nos muros de Oxford por "saecula saeculorum"? Maldita ignorância!
Despreparo total para enfrentar os dodos ingleses, mas a sorte já está lançada. Seja o que Deus quiser, e vamos lá com a mala atulhada de fotos de uma casa de farinha em Parati. Farinha não vou levar... Acham exótica demais. Talvez umas castanhas do Pará? Café? Um palmito fresco escondido do Ibama debaixo da saia? Palito de picapau para mexer caipirinha? Oh, céus!

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