São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eleição nos 'grotões' faz cidadão por um dia

XICO SÁ
ENVIADO ESPECIAL A PERNAMBUCO

Eleição para Lino Manoel de Souza, 44, típico cidadão por um dia, habitante dos "grotões", é um episódio que ele resume da seguinte maneira:
1) Um caminhão o apanha na porta da sua casa.
2) Ele vai até a cidade.
3) "O rapaz" o ensina como votar: entrega-lhe um modelo já preenchido de cédula, que deverá ser copiado na cabine eleitoral.
4) O "cidadão" vota.
5) Ganha como prêmio um almoço,"com carne".
6) É levado de volta para casa, no mesmo caminhão.
Souza mora no sítio Jibóia, município de Cabrobó (PE), e é um dos milhares de brasileiros que só podem exercer alguns minutos de cidadania no dia da eleição. Única data em que é lembrado.
No restante do tempo, essas pessoas vivem numa clandestinidade quase absoluta.
Formam um agrupamento que poderia ser chamado de os "sem-tudo" dos "grotões" –recantos atrasados do interior do Brasil, onde a maioria dos eleitores não têm consciência da importância do voto.
Nem o Estado nem a iniciativa privada fazem parte da vida desses eleitores. Souza, por exemplo, não tem salário, luz, água tratada, rádio, TV, não tem idéia do que seja atendimento médico, escola etc.
Não tem também nenhuma queixa da forma como vive. É um "sem-protesto" (veja entrevista abaixo).
Cargos
Souza e mais boa parte das pessoas que habitam regiões como o sítio Jibóia ou seus vizinhos do sítio Boqueirão não têm idéia do nome dos candidatos nem os cargos que estão na disputa este ano.
A Folha tentou, com insistência, fazer Lino Manoel de Souza lembrar o nome de pelo menos um candidato à Presidência da República. Não saiu nome algum.
Souza não dispõe de rádio nem TV para assistir aos programas do horário eleitoral gratuito.
"No dia (da eleição), o rapaz passa aqui e leva a gente pra votar, não carece saber o nome dos candidatos agora", diz.
Maria Barbosa, 66, vizinha de Souza, tem a mesma despreocupação, acrescida de um tanto de raiva de política. "Eu sei lá o nome desses diabos", diz. "Pra quê?"
Visitas
Os mais escondidos "grotões" do país, onde moram os cidadãos por um dia, não estão sendo visitados nem mesmo pelos candidatos a deputado estadual.
Os eleitores desses lugares não têm usufruído sequer do troca-troca de votos por mercadorias.
"Aqui não passa candidato nem chega nada pra gente", conta Antônia Vitalina de Souza, 57, na fazenda Lagoa Comprida, município de Ouricuri (PE). "Aqui é o lugar onde o cão (diabo) perdeu as botas."
'Anjinhos'
A falta de cidadania de Antônia e da sua família, segundo ela, chega ao ponto de ter que enterrar as crianças, vítimas da desnutrição, em cemitérios clandestinos.
São espécies de valas comuns, onde são jogados também adultos. "Já tenho aí dois netinhos", disse Antônia, enquanto apontava para as covas. "As minhas filhas não têm tempo de enterrar, então eu venho aqui e faço o serviço de enterrar os anjinhos."
Os filhos são enterrados sem nome, sem registro e nem chegam a fazer parte das estatísticas de mortalidade infantil no país.
Antônia não lembra os nomes de seus dois netos –um menino e uma menina– mortos nos últimos dois anos.
"Não sei nem como se chamam direito os vivos", disse, ao lado de Derismar, 5, e Gilmar, 4.

Texto Anterior: Pleito Caído, o retorno!
Próximo Texto: Agricultor "vota no escuro"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.