São Paulo, domingo, 11 de setembro de 1994
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Legalização do aborto, uma triste necessidade

ANTONIO JURANDIR PINOTI

O cego apelo a razões pretensamente humanitárias derrama sobre o povo falsos e hipócritas argumentos contrários à descriminalização do aborto num país como o Brasil, tisnado pela fome, miséria e doença, onde o direito à educação e à saúde pública existe só no papel.
É óbvio que ninguém em sã consciência pode ser favorável ao aborto. Todavia, a sociedade brasileira deve abrir bem os olhos e ver que o assunto não se reveste de mera discussão acadêmica, mas sim de grave problema de saúde pública.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, no ano de 1988 foram feitos quatro milhões de abortos clandestinos no país, nos quais 400 mil mulheres morreram!
Recorre-se ao aborto erradamente como um método de anticoncepção. Porém, não fosse a irresponsável ignorância generalizada a que essas mulheres foram submetidas pelo Estado teriam elas engravidado de forma inconsequente e indesejada?
Ao lado dessa infâmia social é justo que a mulher aniquilada psicologicamente pelo aborto, muitas vezes praticado a golpes de agulhas de tricô, corra ainda o risco de ir parar na cadeia?
A falácia de que o aborto resulta de atitudes egoístas não encontra sustentação diante dos cruéis indicadores sociais do país. Nosso sistema de saúde não oferece planejamento familiar. As deficientes escolas públicas não ensinam sexualidade e reprodução humana. Além disso, a sociedade desampara as mulheres carentes no trabalho de criarem os filhos.
O art. 128 do Código Penal permite o aborto em dois casos, nos quais deu-se prevalência ao direito da mulher e não ao do feto (risco de vida para a gestante e gravidez resultante de estupro).
Ora, passados 54 anos da promulgação do CP, constata-se com tristeza o recrudescimento da miséria e da ignorância, fatores esses que atiram as mulheres à violência do abortamento clandestino e não raro à morte. Por que então fazer ouvidos moucos a esse perverso estado de saúde pública?
A Constituição Federal em seu art. 5º garante o direito à vida. Sobre o aborto a CF é silente. Não o proíbe e nem o permite. Desse modo, forçoso é reconhecer-se que à legislação ordinária compete tratar do assunto, sem qualquer mácula de inconstitucionalidade.
O art. 228, parágrafo 7º, da CF, afirma que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito.
É certo que o abortamento jamais deve ser entendido como meio anticoncepcional. Porém, se o Estado não cumpre o seu dever constitucional de educar o povo e dar-lhe assistência médica e sanitária, a legislação infraconstitucional não pode voltar as costas à realidade do povo, porque assim fazendo corre o risco de ser amíude violada ou até mesmo ignorada, como vem ocorrendo.
Devemos respeitar dogmas religiosos e filosóficos sobre o tema. O certo, contudo, é que o aborto clandestino existe e continuará existindo de forma cada vez mais devastadora para as mulheres, enquanto não sanadas as graves deficiências educacionais do país.
A legalização do aborto, portanto, em nada contribuirá para impedir que milhares de fetos sejam quando muito atirados ao lixo hospitalar. Evitará, com certeza, que juntamente com eles milhares de pobres e desvalidas mulheres sejam levadas para o cemitério ou para o infortúnio das graves e irreversíveis doenças, acarretando a total falência do já ineficaz atendimento médico público.
Finalizo com uma pergunta: Desses dois males (legalização e clandestinidade), qual é o menos danoso à população, destinatária que é do direito, da Justiça e da lei?

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